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A boiada não passará

Atualizado: 5 de jun. de 2020

Carolina Corrêa


Diante de uma pandemia, espera-se que a prioridade de qualquer governo seja organizar o sistema de saúde para enfrentar a crise, preservar as vidas e garantir auxílio financeiro àqueles em situação de vulnerabilidade econômica e social. Todavia, a reunião ministerial de 22 de abril, cuja gravação foi divulgada recentemente pelo STF, expôs que a equipe de governo não está preocupada em minimizar os efeitos da COVID-19 no país.


O Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por exemplo, sugeriu a possibilidade de aproveitar a “distração” geral com a epidemia, para o governo “ir passando a boiada e mudando todo o regramento, e simplificando normas – de IPHAN, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente [...]”. Salles afirmou, ainda: "agora tem um monte de coisa que é só parecer, caneta, parecer, caneta”. Não é a primeira vez que o Ministro do Meio Ambiente e o Presidente da República tentam alterar as regras do jogo nas questões ambientais em prol de interesses ruralistas, sem consultar a população e dialogar com o Congresso Nacional – inclusive, isso já foi discutido aqui no blog.


De fato, há bastante tempo o governo “abriu a porteira” para essa “boiada”: em dezembro, Bolsonaro editou a Medida Provisória 910/2019, que, dentre outras coisas, visava alterar e flexibilizar as principais leis que versam sobre a regularização fundiária. Incluiu-se nessa MP a possibilidade de legalização da posse de terras públicas invadidas e desmatadas, para além do marco temporal de 22 de julho de 2008, previsto no Código Florestal. Sem processo de licitação e com preços abaixo do mercado, esses invasores teriam prioridade na aquisição de até 2,5 mil hectares dessas terras federais. A Medida previa, ainda, que imóveis de até 15 módulos fiscais (e não mais até 4 módulos fiscais, conforme previa o Art. 13 da Lei n.º 11.952/2009) poderiam ser regularizados mediante um procedimento simplificado, sem exigir vistoria prévia e com base na autodeclaração.


Obviamente, se aprovada, essa MP implicaria na anistia de grande parte dos crimes de invasão de terras públicas, além de reduzir os riscos e os custos das grilagens – por esse motivo, a Medida ficou conhecida como a “MP da Grilagem”. Mas, a pressão popular, nacional e internacional, foi ruidosa o suficiente para inviabilizar um acordo entre os líderes partidários da Câmara dos Deputados a fim de se colocar em votação o texto do relator, deputado Zé Silva (Solidariedade/MG), mesmo que a redação do deputado amenizasse parte daquilo que a MP propunha originalmente.


Mais adiante, antes mesmo de caducar o período de votação da MP, o próprio deputado Zé Silva, que é membro da bancada ruralista, apresentou um Projeto de Lei (n.º 2633/2020) que praticamente reedita o conteúdo da MP 910/2020. No dia 20 de maio, o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), foi pressionado para colocar à votação esse novo projeto, inclusive, seu relator, Marcelo Ramos (PL/AM), chegou a apresentar um Requerimento de Urgência para assegurar que o PL fosse pautado na ordem do dia. Porém, diante das resistências da oposição, ele recuou e acabou retirando o Projeto de Lei da pauta, provavelmente para fazer os ajustes necessários capazes de atender a uma das principais exigências dos ambientalistas e da oposição: manter o marco temporal de julho de 2008.


Portanto, em plena Semana do Meio Ambiente, e no contexto de uma crise sanitária gravissíma, há o risco de votação e aprovação desse PL na Câmara dos Deputados, validando as intenções da MP 910/2019. Além de não estabelecer mecanismos capazes de conter e punir adequadamente aqueles que se apropriam das terras e promovem o seu desmatamento ilegal, esse Projeto de Lei estimula a grilagem, responsável por parcela substancial do desflorestamento da Amazônia e pelo acirramento dos conflitos ambientais envolvendo as populações tradicionais e os povos indígenas.


Fundamentalmente, o fator de deflagração de grande parte dos conflitos sociais no campo e nas áreas de floresta é a incerteza a respeito de quem, afinal, tem o direito à terra. Esse PL não equaciona tal problema; pelo contrário, tende a potencializar as disputas. Ao invés de alterar a lei de regularização fundiária, o governo e sua base parlamentar deveriam fortalecer os orgãos que se destinam a fiscalizar a ocupação e a legalização de terras no país – cabe aos Poderes Executivo e Legislativo o apoio a operações conjuntas da Polícia Federal, do Ministério Público, do IBAMA e da Receita Federal para combater os grileiros que atuam, principalmente, na região amazônica. Para isso, é preciso investir em três frentes articuladas: tecnologia, transparência e gestão. Ações como essas permitiriam o processamento das demandas legítimas de regularização fundiária, desde a criação de novas áreas protegidas até a destinação adequada das florestas públicas e, em especial, a demarcação de terras indígenas e de populações tradicionais, sem premiar os invasores de terras que destroem os recursos naturais pertencentes a todos os brasileiros.


Proteger o patrimônio ambiental é uma das prioridades do país. Por isso, o Congresso Nacional precisa exercer o seu papel de controle do Poder Executivo e barrar a “boiada” que Salles, Bolsonaro e sua bancada pretendem fazer passar em pleno contexto de pandemia. Ou, então, o Legislativo deverá arcar com a responsabilidade de ter aprovado um Projeto de Lei que tende a transformar grande parte da Amazônia brasileira em terra arrasada.


Palavras-chave: Movimento Voto Consciente, Poder Legislativo, Poder Executivo, pandemia, coronavírus, Ricardo Salles, Congresso Nacional, Semana da Sustentabilidade.

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