Michelle Fernandez e Carlos Machado
Há alguns dias, a pauta do racismo vem ocupando a agenda pública brasileira novamente. As mortes de Miguel Otávio (5 anos), no Recife, e de João Pedro (14 anos), no Rio de Janeiro, entraram nas estatísticas de mortes de jovens negros, uma realidade cotidiana na nossa sociedade.
A luta por reconhecimento e direitos da população negra não é recente. Organizações de negras e negros que buscam defender seus direitos nos remetem ao início do século XX. Lideranças negras organizadas junto ao Movimento Negro Unificado já completam mais de quatro décadas de denúncia sobre as violências sofridas. Porém, historicamente, esse clamor tem recebido uma tímida acolhida no Parlamento brasileiro e evidencia os limites da nossa democracia.
A produção legislativa no Brasil sobre temas relacionados a temáticas raciais segue em certa medida os padrões da sociedade. Segundo estudo de Carlos Escosteguy (2003), entre 1940 e 1990 os projetos de lei que versavam sobre temas relacionados a raça e racismo foram raros, algo em torno de cinco projetos por legislatura. De fato, apenas com a redemocratização durante os anos 1980 que o tema ressurge com maior ênfase no Parlamento. Em levantamento realizado por Ana Júlia França Monteiro (2014), com dados entre 2002 e 2013, atualizando as informações apresentadas por Escosteguy, constata-se que durante o segundo governo FHC houve o ápice da produção legislativa sobre temas relacionados à questão racial. Nesse período foram apresentadas trinta proposições. Porém, nos anos seguintes, houve um declínio nessa produção legislativa, chegando a apenas dezessete projetos durante o segundo governo Lula.
Possivelmente, a criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPIR) reduziu a necessidade de atores ligados ao movimento negro ou a causas antirracistas buscarem o Parlamento para sua atuação política, preferindo a dinâmica do Executivo para esse tipo de ação. Contudo, isso também sinaliza a importância de atores organizados do movimento negro para colocar em pauta iniciativas legislativas relevantes para a população negra. Ou seja, há uma forte carência de parlamentares organicamente interessados e vinculados a pautas antirracistas. De fato, são poucos os interlocutores do legislativo com esta agenda. Entre os parlamentares que apresentaram mais de uma proposta legislativa sobre o tema encontram-se apenas 5, considerando o período de 1945 a 2014: Paulo Paim, Benedita da Silva, Abdias do Nascimento, Luiz Alberto e Adalberto Camargo.
A partir de 2015, novas dinâmicas estão em desenvolvimento. Em estudo mais recente sobre o tema, Fábio Vidal Santos (2019) encontrou um total de 233 projetos de lei para o período de 2015 a 2018, o que nos indica um ativismo legislativo mais intenso do que em anos anteriores. Neste levantamento foi identificada a produção de 101, 54, 67 e 44 projetos de lei respectivamente para os anos de 2015, 2016, 2017 e 2018. Considerando que até 2014 a média, desde a década de 1980, era de cinco textos legislativos por ano, já fica marcado um possível retorno da atuação do movimento negro junto ao legislativo. Ainda resta uma análise qualitativa sobre este material para identificar se as proposições tratam de temas relevantes para a população negra. Além disso, é importante analisar se as medidas se propõem a reduzir as desigualdades raciais no Brasil.
A pauta antirracista, que evoca a necessidade da sociedade se mobilizar de fato quando uma vida negra é ceifada, busca a melhoria das condições de vida da população negra. A luta do movimento negro não pode ser resumida apenas a uma pauta. Ela disputa a sobrevivência de pessoas negras frente a violência policial, o fim da seletividade penal, as disparidades de salários no mercado de trabalho, a valorização da população negra no ensino, a garantia de que os espaços universitários sejam ocupados por pessoas negras, a igualdade de acesso à saúde para a população negra, a valorização das tradições religiosas de origem africana, a melhoria dos serviços públicos, a representatividade e valorização social de pessoas negras, a sobrevivência das populações voltadas à agricultura no interior de todo o país, entre outras pautas. Portanto, eis aqui uma série de temas que devem adentrar as discussões no Parlamento brasileiro.
Em meio à pandemia, pessoas decidiram arriscar suas vidas para se manifestar contra ideias fascistas, contra o racismo e o avanço do assassinato de pessoas negras. Já não há maneira de avançarmos enquanto sociedade ignorando as desigualdades e injustiças com a população negra do país. Nesse sentido, o Parlamento deve ecoar o clamor das ruas e incluir nas suas discussões a pauta racial. Essas reivindicações tratam da sobrevivência de milhares de brasileiros e brasileiras, do rechaço à violência policial, da luta diária contra a morte. Racismo e antirracismo não são apenas práticas individuais, também são posições que conduzem práticas políticas. Eximir-se dessas discussões implica apoiar a continuidade de desigualdades perpetradas pelo racismo ao longo da nossa história. É urgente trazer essa pauta para dentro do nosso Parlamento.
Referências:
ESCOSTEGUY, Carlos Eugênio Varella. As iniciativas parlamantares no Congresso Nacional: ações afirmativas em prol da população negra. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Brasília: Universidade de Brasília, 2003.
MONTEIRO, Ana Júlia França. Espaço público no Brasil: questão racial e os desafios para o diálogo na arena política. Monografia (Graduação em Ciência Política) Brasília: Universidade de Brasília, 2014.
SANTOS, Fábio Vidal. A raça na casa do povo: a atuação política dos deputados autodeclarados pretos e pardos. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Brasília: Universidade de Brasília, 2019.
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