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A falácia do Legislativo forte

Graziella Testa



O assunto do suposto fortalecimento do Legislativo ante o Executivo parece ser consenso no debate público. Desde análises conjunturais que creditam o fenômeno a Arthur Lira até interpretações mais exageradas e definitivas que falam em um “semipresidencialismo de fato”, todos parecem concordar que o Executivo cada vez mais perde poder para o Legislativo e que depende dele para governar. É preciso, no entanto, isolar variáveis para entender o suposto fenômeno de forma mais ampla e aprofundada. O grande desafio no campo da ciência política é separar quais resultados são frutos de conjunturas, passageiras, de instituições, mais duradouras.

Um primeiro ponto que precisa ser colocado nesse assunto é que o Legislativo sempre teve importância central na formação de governo e desenho de políticas públicas. Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Congresso Nacional teve papel inescapável para os governantes eleitos para o Executivo, ainda que o poder de agenda tenha pendido para o Executivo, que inicia a maior parte da legislação aprovada na Casa. Na literatura em ciência política não é novidade que o Legislativo tem peso relevante e a figura dos partidos é fundamental na construção da coalizão, isto é, grupos de partidos que optam por compor a base do governo e compartilham com o chefe de governo a priorização de temas e implementação de políticas públicas. O Legislativo chega a se utilizar das prerrogativas formais de agenda do presidente, como as Medidas Provisórias, para aprovar pauta própria.

Some-se a isso o processo de constitucionalização de políticas públicas que poderiam ser aplicadas em formato de lei ou de normativos infralegais mas que passam a depender de 3/5 dos parlamentares de cada Casa. Mais um ponto que está presente nas literatura é que uma das consequências da opção pela constituição analítica e repleta de temas materialmente não constitucionais é a criação de uma alta dependência do Executivo em relação ao Legislativo. Disso resulta que para o Executivo instituir uma política pública, não pode fazê-lo por meio de decreto, unilateral, ou por meio de Projeto de Lei, que depende de maioria simples para ser aprovado. Políticas públicas constitucionalizadas tornam o governo dependente de 308 dos 513 deputados e 49 dos 81 senadores.

Nenhum desses fenômenos é novo ou pode ser creditado a qualquer presidente da Mesa ou presidente da República. Há algumas mudanças relevantes na relação entre Executivo e Legislativo nos últimos cinco anos. A primeira que precisa ser ressaltada é a atuação do Congresso Nacional durante o afastamento social em consequência da pandemia da Covid-19. Por um lado, o Legislativo assume papel de relevo e autonomia para responder aos inúmeros desafios impostos pela pandemia e diante de um Executivo inerte e negacionista. Por outro lado, e esse tema raramente é levado em conta, o Legislativo durante o afastamento social fica reduzido ao Plenário, sem funcionamento das comissões, grupo de trabalho e outros grupos que são fundamentais para o funcionamento da Casa e inclusão das demandas dos deputados e deputadas e da sociedade civil. Há, portanto, dois processos que correm em paralelo, por um lado o Legislativo ocupa um vácuo de poder deixado pelo Executivo e, por outro, o funcionamento das Casas legislativas é centralizado na Plenário e, portanto, no Presidente da Mesa.

A partir daí, esses dois fenômenos seguem acontecendo e são tidos por muitos atores do debate público como sendo um só ou inseparáveis. Não são. Por um lado, há o fortalecimento do Legislativo diante do Executivo e, por outro, a centralização do processo legislativo na Câmara em torno da figura do presidente da Mesa. É importante separar esses dois processos porque o fortalecimento do Legislativo é um fenômeno conjuntural que foi consequência primeiro da inércia do Executivo, que primeiro escolhe não agir diante da crise da covid e depois escolhe executar as emendas de relator destinadas pelo Presidente da Mesa. Esse ponto precisa ficar claro: nem um real destinado ao orçamento secreto poderia ser gasto sem anuência do presidente. O fortalecimento do Presidente da Mesa, que passa a dispor de recursos para negociar com os parlamentares, depende diretamente da concordância do Presidente da República, à época Jair Bolsonaro.

Por outro lado, o processo de centralização dos trabalhos legislativos começa como um fenômeno conjuntural (em consequência do afastamento social), mas vai ganhando contornos institucionais a partir da mudança de processos internos de funcionamento do Congresso e da Câmara. A literatura em ciência política fala em dependência da trajetória para definir a dificuldade em se mudar instituições, ainda que sejam pouco eficientes. Assim, a centralização imposta pelo afastamento social resulta em uma nova trajetória centralizada da qual o presidente da Mesa não quer abrir mão e a partir daí desencadeia uma série de mudanças formais que irão institucionalizar a centralização dos processos. Um exemplo é a mudança de tramitação no processo legislativo das Medidas Provisórias, que é reclamado pelo Senado e desencadeia conflito aberto entre as Casas, fenômeno raro.

É preciso destacar dois momentos em que a centralização desses processos decisórios é institucionalizada. Primeiro, as mudanças regimentais que reduziram os instrumentos de atuação da minoria em Plenário. A capacidade de obstruir processos e evitar que a maioria solape a minoria é reduzido drasticamente sob o argumento de “agilizar os processos internos”, tema da campanha de eleição para Mesa de Arthur Lira. Depois, para além das mudanças internas do Plenário, no início de 2023 são feitas novas mudanças que aumentam consideravelmente o número de comissões permanentes e cria nova discricionariedade ao Presidente da Mesa, que agora pode escolher quais proposições passarão pelo sistema de comissões permanente e para quais será formada comissão especial (para as quais há maior flexibilidade para escolher membros simpáticos ao tema).

Em suma, enquanto as prerrogativas orçamentárias do presidente da Mesa foram conjunturais e já estão inclusive vetadas pelo Supremo, os processos que resultaram na centralização dos processos no Legislativo são institucionais, muito mais difíceis de serem modificados. O Legislativo não está mais forte, está menos participativo e, portanto, menos democrático.

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