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A própria história não defendeu o voto impresso no Brasil. E nós?

Rodney Amador e Joyce Luz



Mesmo após os 27 anos de sua introdução, ainda nas eleições gerais brasileiras de 1994, o uso da urna eletrônica hoje é questionado pela apresentação e discussão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/2019. A proposta apresentada pela Deputada Federal Bia Kicis (PSL-DF) prevê a impressão de cédulas em papel na votação e na apuração de eleições, plebiscitos e referendos no Brasil. Pelo texto da proposta, essas cédulas deverão ser conferidas pelo eleitor e, somente após tal verificação, é que poderão ser depositadas em urnas indevassáveis de forma automática e sem contato manual, para fins de auditoria.



A justificativa apontada pela autora da proposta para sua apresentação baseia-se na alegação de que a urna eletrônica seria passível de violação, ou seja, de fraude. Ainda que o conteúdo de tal alegação seja preocupante por si só devido à falta de provas, há outros pontos que merecem destaque e que preocupam muito mais pelas consequências da adoção do voto impresso.



Ainda em 2002, cabe relembrar aqui, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a fim de realizar um teste para a implementação do voto impresso, interligou às urnas eletrônicas mais de 23 mil impressoras em 150 municípios espalhados pelo estado do Sergipe, do Distrito Federal e de cidades próximas às capitais. O resultado geral, de acordo com dados do relatório, foi o de que nesses municípios a adoção do voto impresso tornou as eleições inseguras, confusas e passíveis de fraude.



Aprofundando os resultados e consequências da adoção do voto impresso tem-se, ainda, algo pouco lembrado por muitos: o direito do voto dos analfabetos. Em 1988, a nossa Constituição Cidadã finalmente incluiu o direito ao voto aos analfabetos. Exigir que o eleitor confira o resultado impresso de seu voto e só assim complete o processo faria com que mais de 11 milhões de brasileiros, segundo os últimos dados do IBGE, tivessem o seu direito cerceado. Vale dizer que o voto não é obrigatório aos analfabetos e a experiência brasileira e internacional mostra que, quando o voto não é obrigatório, qualquer dificuldade técnica pode afastar definitivamente um grupo do processo eleitoral.



O outro ponto, sobre a necessidade, é ainda mais dramático: num país com quase 150 milhões de eleitores, obrigados por lei a comparecer às urnas, qualquer acréscimo nos custos eleitorais pode ser difícil, oneroso aos cofres públicos.



Quanto às consequências de fraude e violação da segurança do eleitor, vale dizer que o voto já foi impresso por muito tempo no Brasil e a experiência histórica evidencia a razão da adoção do processo eletrônico atual. Em 1932 foi criada a Justiça Eleitoral brasileira, antes disso, quem averiguava se as eleições aconteciam corretamente eram os próprios políticos, por meio da Comissão de Verificação de Poderes do Congresso brasileiro da época. Diversos autores e pesquisadores, no entanto, mostraram o uso político desta comissão para punir adversários políticos – a famosa degola: políticos ganhavam a eleição, mas não “levavam”, sendo de diversas formas impedidos de assumir o cargo.



A Justiça Eleitoral foi, então, decisiva para resolver este tipo de fraude. Além disso, ela sacramentou o direito ao voto secreto: ninguém tem o poder de saber em quem o eleitor votou se este não quiser revelar. A razão disso é a proteção do eleitor; sem isso, poderíamos ser punidos por não votar neste ou naquele candidato, já que o voto seria, como se falava na época, “à descoberto”. No entanto, fazer isso valer na prática mostrou-se muito mais difícil: até 1955, os eleitores precisavam votar com uma cédula que já vinha preenchida pelo candidato – muito parecida com estes “santinhos” que a gente ainda recebe hoje em dia. Os candidatos mandavam imprimir suas cédulas e distribuíam ao eleitor, que muitas vezes nem sabia dizer o que estava escrito no voto que depositava. Isso sem falar que o procedimento facilitava ao político contar, numa cidade ou num bairro por exemplo, quantos votos ele deveria receber: se foram entregues 100 cédulas, ele deveria obter 100 votos. Pesquisas recentes mostram que este controle era muito preciso, com planilhas de pagamento aos cabos eleitorais, contabilidade etc.



A cédula oficial de 1955 veio como uma tentativa de solução: agora o eleitor deveria ler o conteúdo e assinalar o candidato desejado. Isso foi um passo importante na segurança do eleitor, mas ainda não garantia completamente a inviolabilidade do voto e as fraudes. Existem relatos de urnas já cheias – nos EUA, este fenômeno é conhecido como “stuffed ballot box”, ou “urna estufada” – com várias cédulas já preenchidas anteriormente. Isso sem falar que o resultado levava dias – semanas às vezes – para ser aferido. Todos que acompanharam a última eleição norte-americana para presidência devem ter visto este drama, madrugadas a fio, esperando o resultado ser contabilizado, papel a papel, voto a voto.



A urna eletrônica estabelecida em 1994, por sua vez, veio para resolver estes novos problemas: ela funciona como uma caixa registradora, emitindo, após a eleição, um extrato com todos os votos nela contidos. É impossível identificar quem depositou aqueles votos, só se sabe que eles foram depositados e estes extratos são preservados para fins de audição - tanto ao longo do dia da eleição, quanto para audições posteriores. Outro fato interessante é que urnas mecânicas não são uma invenção recente: os Boletins Eleitorais, preservados pelo Centro de Memória do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, mostram diversas invenções paulistas de “máquinas de votar”, desde os anos 1940! Tanto na época quanto hoje, a preocupação dizia respeito à segurança do eleitor e das eleições, já que somente o papel, somente a cabine indevassável, não bastavam. Imagine o que estes inventores diriam sobre um mecanismo como a urna eletrônica?



Os estudos e testes elaborados pelo TSE, destacados acima, indicam que esta segurança, ao invés de assegurada, poderia estar sob risco com a impressão do voto: a impressão não torna o voto mais auditável do que é hoje e, principalmente, põe em risco eleitores e eleições. Um registro do voto do cidadão, da forma como for, permite o controle por parte dos políticos. Veríamos como antigamente o surgimento de “coronéis”, querendo saber se os “seus votos” foram depositados. Inclusive, matérias jornalísticas e pesquisas realizadas no Massachusetts Institute of Tecnology mostram que isto pode já estar acontecendo em comunidades controladas por milícias no Rio de Janeiro, o que é muito grave.



A história nos conta que a manutenção da Democracia, bem como sua melhoria, faz parte de um longo processo de lutas e pequenas vitórias. O passado nos ensina o que não devemos fazer e o presente nos cobra tais ensinamentos. Resta, agora, saber se nós aprendemos com o passado ou se teremos que revivê-lo, ignorando o que a própria história do Brasil nos contou até aqui.

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