Graziella Testa
Nas últimas semanas falamos muito sobre democracia representativa e eleições. Ainda que nossa Constituição preveja algumas possibilidades de democracia direta, a maior parte das decisões são tomadas por representantes eleitos. O processo de escolha desses representantes tem sido uma questão desde a implementação desse tipo de democracia. Isso não é exclusividade do Brasil, uma das linhas de pesquisa importantes na ciência política contemporânea é a que investiga a integridade eleitoral. De um lado mais poético, se a democracia é a substituta da guerra, as eleições substituem a batalha.
Bem como em qualquer guerra, importa saber quem vai se alistar para ir à luta. Assim também, uma das partes mais fundamentais é decidir quem pode votar e ser votado e como ocorre o processo de cadastramento dos eleitores e do dia da votação. Nos Estados Unidos há um grande debate em torno das inúmeras regras difusas que determinam quem pode votar (tempo residindo no município, documentação exigida, vida pregressa) e quais são os custos para o alistamento (presença física, filas de espera, locais disponíveis). Se uma democracia pressupõe que todos são iguais, o custo para o alistamento eleitoral e para votar deveria ser igual para todos.
No Brasil, resolvemos essa questão estabelecendo o voto obrigatório. Os custos para acessar as urnas foram reduzidos com intensa capilarização das sessões eleitorais e a agilidade no processo, mas os custos continuam sendo maiores para a população vulnerável e rural. A respeito dos benefícios, na ausência do voto obrigatório, vota quem percebe ter vantagens superiores aos custos, ou seja, pessoas com algum engajamento político. O voto obrigatório tem também, portanto, função de educação política. Em outras palavras, se não podemos estabelecer que todos tenham os mesmos custos para votar, escolhemos decidir que sejam iguais os custos de NÃO votar. Foi como escolhemos reduzir as desigualdades em nossa democracia representativa.
Esse ano houve mudanças nesse processo. A taxa de abstenções no compilado nacional foi de 23,15%. Em 2016, a taxa foi bem mais baixa, 17,5%. Essa taxa também teve grandes mudanças ao longo do território. No Rio, o candidato mais votado recebeu menos votos do que o número de eleitores aptos que não foram votar, pouco mais de 32%. A maior abstenção até então tinha sido a das últimas eleições municipais e ficou em 24,2%. Evidentemente que a pandemia e mudança de data teve papel fundamental na diminuição do comparecimento, mas não podemos deixar de pensar nas mudanças procedimentais vindas do judiciário.
A partir de 2020 foi possível justificar o não comparecimento de casa, por meio de aplicativo. Tal decisão pode parecer apenas uma nova ferramenta de governo eletrônico que visa facilitar a vida dos cidadãos, mas preocupa que seu estabelecimento tenha ocorrido, como já não é novidade vindo da Justiça Eleitoral, sem qualquer debate ou inclusão da sociedade civil. A literatura em ciência política e economia política está cheia de evidências que documentam consequências adversas em reformas institucionais, isto é, uma regra muda visando A e B mas acaba afetando C. A melhor forma de reduzir as incertezas quanto aos resultados das mudanças é envolver o maior número possível de setores da sociedade que serão afetados por ela. Isso ocorre no Legislativo, mais especificamente nas comissões temáticas.
A justificativa por meio de aplicativo reduziu os custos para quem não quer votar optar por não o fazer? Sim. Vamos afetar de forma igual toda a população? Improvável. A justificativa pelo aplicativo vai tornar inócuo o voto obrigatório? Não sabemos. Sabemos muito pouco mas sabemos sobretudo que há grande potencial de efeitos adversos e que a decisão modifica incentivos e surte fortes efeitos. Como toda decisão dessa magnitude, não deveria ser tratada como um ato administrativo monocrático, mas como uma decisão política que deve passar pelo escrutínio democrático da sociedade civil. Não há guerra sem soldados, não há democracia sem cidadãos.
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