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Afinal, por que as milícias são um problema para a política brasileira?

Rodrigo Sartori Monteiro e Joyce Luz



A evolução das milícias no Brasil tem chamado atenção pelo seu protagonismo no interior do Estado brasileiro. Quando se discute sua atuação, não é raro que surja a alegação batida de como isso “só poderia acontecer no Brasil”. A jabuticaba brasileira, que pressupõe que nosso país é de tal modo uma exceção sem precedentes na história. Voltemos um pouco na história do ocidente para rever essa posição. Na esteira da relação entre política e violência, o sociólogo alemão Max Weber definiu o Estado em seu texto seminal “A política como vocação” de 1919: “uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território (...) reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física.” E acrescenta: “é, com efeito, próprio de nossa época não reconhecer, em relação a qualquer outro grupo de indivíduos, o direito de fazer uso da violência”.


A partir dessa premissa, o também alemão Norbert Elias desenvolveu sua teoria do processo de formação do Estado. Numa análise comparativa entre França, Inglaterra e Alemanha, Elias examinou a transformação simultânea entre a estrutura psíquica interior dos indivíduos e a pacificação interna das sociedades - a monopolização estatal da violência legítima. Analisando principalmente manuais de boas maneiras, Elias ressalta como a agressividade é gradativamente excluída da vida social, paralelamente ao desenvolvimento de uma barreira que se opõe, dentro de cada indivíduo, à pulsão agressiva.


No Brasil, de acordo com os pesquisadores Alba Zaluar, Isabel Siqueira e José Souza Alves, a origem das milícias remonta ao período da ditadura militar, iniciado em 1964. Nessa época, os chamados grupos de extermínio formados por “policiais matadores” passaram a atuar particularmente nas comunidades cariocas sob o comando de traficantes, como provedores alternativos de segurança privada.


Na disputa pelo que se entende por segurança nas comunidades pauperizadas, tais grupos ocupam a lacuna do monopólio da força estatal. Além disso, passaram a prover serviços básicos que o Estado brasileiro falha em oferecer. Já presentes em 23 dos 27 estados brasileiros (contando com o Distrito Federal), algumas milícias oferecem hoje a milhões de cidadãos o acesso a serviços como gás, água, energia elétrica, transporte, etc. Vitor Nunes Leal, cientista político e historiador, ficou conhecido por definir o famoso “voto de cabresto” em sua obra Coronelismo, Enxada e Voto. Cito: “a essência, portanto, do compromisso ‘coronelista’ consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estatal, carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar.” (LEAL, 2012, p. 67 e 68). Quando Leal diz “assuntos relativos ao município”, fica evidente as semelhanças entre o Coronelismo de 1930 com o fornecimento miliciano desses serviços e seu surgimento na Ditadura Militar. O voto de cabresto se atualiza nas comunidades brasileiras: o preço pago é o apoio político incondicional dos moradores reféns dessa situação.


Retomando a história europeia, Norbert Elias aponta que a Revolução Russa (1917) inaugurou o uso de violência paraestatal como um meio planejado para destituir um grupo dominante, tornando a violência um modelo de ação política. Como consequência da Primeira Guerra (1914-1918), a Alemanha da República de Weimar sofreu forte recessão econômica e altos índices de inflação e desemprego. Sob efeito da violência como um modo de ação na política, iniciou-se o que Elias chama de processo de duplo vínculo: “o uso de violência por um determinado grupo contra outro dá origem, com elevado grau de probabilidade, ao uso de violência pelo outro grupo contra o primeiro (...) se tal processo é posto em movimento, fica extremamente difícil sustá-lo depois”(ELIAS, (1997, p.198).


Surgiram assim os freikorps (algo como Divisões Livres), grupos paramilitares formados pelo grande contingente de homens que, após a primeira guerra, ficaram impossibilitados de arranjar um emprego civil apropriado aos seus conhecimentos e expectativas.

Consideravam-se os verdadeiros representantes da nação e cultuavam a brutalidade e a violência como sinal de honra. Após a humilhação alemã do Tratado de Versalhes que selou o fim da Primeira Guerra, essas organizações terroristas assassinaram um sem número de políticos considerados indesejados, como Matthias Erzberger, político centrista e ex-ministro das Finanças. Seus assassinos foram temporariamente detidos, mas logo soltos.


A ideia de assassinar adversários políticos era inquestionável tanto para os radicais do freikorps quanto para os trabalhadores revolucionários, numa espiral contínua do processo de duplo vínculo em que a política foi exercida através da violência. Em março de 1920, ocorre uma tentativa fracassada de golpe de estado por um fervoroso nacionalista, Wolfgang Kapp, levada à cabo pelas freikorps. Passado o tumulto, uma série desses amotinadores estavam sendo retirados por dois caminhões de Shöneberg. Mal saiam do estacionamento quando foram detidos pela multidão que os cercava. Pedras e garrafas foram jogadas e, no embate que se seguiu, nove oficiais foram espezinhados e mortos.

Nessa situação de polarização extrema, a aposta de cada grupo na violência só aumenta - sem haver um ponto de retorno possível. No entanto, o equilíbrio de forças entre ambos era muito desproporcional; a disciplina e o acesso às armas dos freikorps não se comparava à espontaneidade das ações dos trabalhadores radicais. Como efeito da Revolução Russa, a classe trabalhadora organizada na Europa dividiu-se em dois campos que se hostilizavam mutuamente: os que apoiavam uma reforma social não-violenta; e os que desejavam a revolução, um projeto de tomada de transformação social violento. Enquanto essas duas frentes disputavam ferozmente a hegemonia da esquerda, entre as organizações análogas da classe média havia um silencioso acordo tácito. Essa diferença foi crucial para a ascensão nazista. O medo do comunismo e o desprezo pela política da República foram o apoio que os freikorps precisavam para prosseguir em seus atentados até que a erosão da legitimidade do Estado fosse o suficiente para sucumbi-lo. O resto da história já é de conhecimento de todos. Um crítico da época assim sumarizou as atuações das freikorps na Alemanha do entreguerras:


“[São revolucionários permanentes que] foram desarraigados e perderam toda a conexão interior com uma ordem social humana regulada (...) Incapazes de qualquer cooperação verdadeira, determinados a oporem-se a qualquer espécie de ordem, cheios de ódio a toda e qualquer autoridade (...) Por uma questão de princípio, são inimigos de toda a autoridade”

O excerto acima, que tanto denigre os paramilitares, é de Adolf Hitler. Foi declamado após a “Noite das facas longas”, quando 85 pessoas foram executadas pelo Partido Nazista, dentre eles grandes líderes freikorps e mercenários que viram em Hitler sua chance de ascensão. Quando a relação entre política e violência se invertem, o que resta é pura brutalidade incontrolável. É impossível negociar, nos termos da política, quando se tem um rifle em riste.


Palavras-chave: Movimento Voto Consciente, Poder Legislativo, Poder Executivo, milícias, segurança, violência, poder, voto de cabresto.

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