João Paulo Viana
No bojo do processo de redemocratização, ainda durante a Assembleia Nacional Constituinte, o saudoso cientista político Leôncio Martins Rodrigues lançava o clássico: Quem é Quem na Constituinte - uma análise sociopolítica dos partidos e deputados (Oespe-Maltese, 1987). Como o próprio título aponta, a obra apresenta um raio X dos deputados federais e senadores que, à época, elaboravam a Carta Magna de 1988. Certamente, uma das questões mais interessantes apresentadas no livro se referia a autoclassificação ideológica dos parlamentares. Com raríssimas exceções, a imensa maioria dos congressistas brasileiros negava pertencer ao espectro político-ideológico da direita. Fenômeno compreensível naquela quadra histórica, afinal, num intervalo de menos de cinquenta anos, o Brasil havia vivenciado dois regimes ditatoriais, e as “feridas não cicatrizadas” de ambas as experiências autoritárias eram ainda evidentes, principalmente, pela ditadura militar que ora se encerrava após 21 anos. Assim, surgia, naquele momento, o fenômeno brasileiro denominado, posteriormente, pela ciência política como “direita envergonhada”.
No estudo de Rodrigues, a bancada constituinte do recém-criado estado de Rondônia, que realizava em 1986 a segunda eleição ao Congresso Nacional após a fundação do estado em 04 de janeiro de 1982, não fugiu à regra. Dos oito deputados federais eleitos para a Constituinte, perpetuou-se o bipartidarismo da eleição inaugural entre PDS e PMDB, agora, com PMDB e PFL, esse último, herdeiro direto do PDS ditatorial. Inversamente à disputa inicial, o PMDB possuía cinco parlamentares, e o PFL estava representado com três. No Senado, após o sucesso total do PDS na eleição em 1982, o PMDB também inverteu o jogo, garantindo dois senadores na legislatura constituinte. Seguindo um padrão nacional, nenhum parlamentar rondoniense se autodeclarou como direita, mesmo os defensores do regime militar recém-sepultado e políticos que anos mais tarde apresentariam notórias posições conservadoras. Nesse contexto, no mais jovem estado da federação, por diversas razões tido por muitos como um produto direto do regime militar, a direita era, claramente, “envergonhada”.
No início da década passada, quase 25 anos depois, em outro trabalho de grande relevância para a Ciência Política brasileira, os cientistas políticos Timothy Power e Cesar Zucco publicavam a coletânea: O Congresso por ele mesmo: autopercepções da classe política brasileira (UFMG, 2011). A obra tinha como foco seis legislaturas analisadas pela Pesquisa Legislativa Brasileira, o mais completo estudo sobre a opinião dos congressistas brasileiros desde a transição democrática. Entre os principais achados, no plano ideológico, embora parte considerável dos representantes se declarasse favorável a uma agenda conservadora, paradoxalmente, a autodeclaração dos parlamentares ratificava o conceito de “direita envergonhada” que, até então, demonstrava-se atual.
Não obstante, após o início do segundo governo Dilma Rousseff (PT), em especial, a partir das “jornadas de junho” de 2013, o fenômeno da “direita envergonhada” brasileira mudaria substancialmente. Se a conjuntura radicalizada se expressaria já na eleição presidencial de 2014, de fato, é com o impeachment de Dilma em 2016, e, posteriormente, a eleição presidencial de 2018, que a direita brasileira ocuparia espaço como ator de grande relevância política. A derrocada do PSDB, após vinte de anos de bipartidarismo na eleição presidencial, cedeu lugar ao conservadorismo radical que emerge ao poder sob forte influência da Operação Lava Jato e, consequentemente, a vitória de Bolsonaro, então filiado ao PSL, no pleito de 2018. Nesse contexto, em Rondônia, a guinada ultraconservadora encontrou terreno fértil para ascensão, manutenção e ampliação do poder.
Como exposto outrora em nossa coluna no Legis-Ativo, diversos fatores históricos e estruturais, denominados aqui como uma “combinação explosiva”, ajudariam a explicar os determinantes do conservadorismo rondoniense. Em que pese a influência de uma região de fronteira, historicamente marcada pela formação política sob a égide do militarismo e do autoritarismo, tendo o agronegócio como vetor da economia, e dotada de um robusto eleitorado evangélico, a guinada ultrarradical observada na política rondoniense nos últimos anos caracteriza o estado como o maior reduto da extrema-direita bolsonarista na atualidade. No plano eleitoral, Rondônia foi a única unidade federada na qual Bolsonaro (atual PL) venceu em todos os municípios em cada um dos quatro turnos das eleições de 2018 e 2022. Nas últimas eleições gerais, o estado não elegeu nenhum parlamentar filiado a partidos progressistas ao Congresso Nacional. Na Assembleia Legislativa, dos 24 deputados, as legendas denominadas de esquerda ou centro-esquerda possuem apenas dois representantes, ou seja, menos de 10% da casa legislativa.
Na esfera governamental, a convergência com a agenda política do governo Bolsonaro, à época, rendeu elogios do ex-presidente ao parlamento rondoniense, a ponto da ALE-RO ser identificada como a mais bolsonarista entre os parlamentos estaduais. O governador reeleito, Cel. Marcos Rocha (União), um dos mais fiéis apoiadores do ex-presidente, tem avançado na agenda pró-agronegócio, nas pautas religiosas e identitárias dos costumes, com o apoio majoritário da Assembleia Legislativa. Assim, o estado tem implementado uma forte cruzada antiambiental, com agudo viés religioso radical. A título de exemplos, temas como legalização de garimpo no Rio Madeira, diminuição do tamanho de unidades de conservação ambiental, proibição de destruição de maquinários apreendidos em operações ambientais tem, em sua maioria, sido alvo de questões judiciais.
Na atual legislatura da ALE-RO, em pouco mais de cem dias, os parlamentares já aprovaram a realização de cultos e missas no interior do parlamento; e a instalação de uma CPI para investigar a criação de áreas de conservação ambiental. E até mesmo um projeto que institui uma medalha intitulada “Olavo de Carvalho”, honraria destinada a personalidades com reconhecidos feitos pelo estado, encontra-se atualmente em tramitação na casa legislativa. Cumpre mencionar ainda que, nas últimas semanas, tem sido motivo de manchetes na imprensa local a notícia de que Bolsonaro pode vir a se candidatar ao Senado por Rondônia nas eleições de 2026. Não obstante, no momento, o assunto é tratado apenas como especulação.
Em meio a essa conjuntura de radicalização conservadora, torna-se imprescindível uma atenção especial do governo federal em relação ao pujante estado de Rondônia. Qualquer política do governo Lula (PT) com vistas à Amazônia, a questão ambiental e o desenvolvimento sustentável, passa, necessariamente, por Rondônia. Enquanto isso não acontece, infelizmente, ao visar o lucro a todo custo, sem qualquer apreço ou alinhamento com o debate sustentável e a defesa do meio ambiente, temas em voga no plano internacional, a elite política estadual, diante de um campo progressista completamente esfacelado, perpetua uma antiga visão de desenvolvimento que remonta há cinquenta, talvez, quarenta anos, durante os períodos de colonização e fundação do estado. Ao que tudo indica, retornaremos ao tema num futuro próximo.
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