Michelle Fernandez
Estamos começando um ano de eleições municipais. Em 2020, os 5.570 municípios brasileiros irão às urnas para escolher seus prefeitos e vereadores. Por esse motivo, as questões vinculadas à vida política municipal serão pontos de pauta recorrentes nas discussões e análises políticas dos próximos meses.
A partir da Constituição Brasileira promulgada em 1988, estabelece-se um arranjo institucional que delega novas responsabilidades aos municípios. Nesse novo desenho institucional, os municípios são entes federativos e, portanto, têm autonomia política e administrativa. Derivada dessa autonomia, os municípios passam a ter responsabilidade no provimento de serviços públicos importantes à população. As principais obrigações municipais passam a estar relacionadas a serviços e direitos essenciais como educação, saúde, transporte coletivo, ordenamento territorial, proteção do patrimônio cultural, entre outros. Dessa forma, a qualidade da provisão e os resultados de uma série de políticas públicas passam a depender de capacidades institucionais locais, particularmente dos recursos humanos, técnicos, informacionais, capacidade de gestão e articulação entre diferentes serviços e políticas e, especialmente, capacidade fiscal dos municípios.
Partindo do suposto de que a capacidade fiscal é fundamental para medir a eficiência da gestão municipal, apresento o panorama dos municípios brasileiros a partir do Índice Ferjan de Gestão Fiscal (IFGF). Divulgado no final de 2019, o índice avalia as contas de 5.337 municípios e é construído a partir de resultados fiscais oficiais declarados pelas prefeituras. O IFGF é composto por quatro indicadores: IFGF Autonomia, IFGF Gastos com Pessoal, IFGF Liquidez e IFGF Investimentos. A leitura dos resultados varia entre 0 e 1 (quanto mais próxima de 1 melhor a gestão fiscal do município). Com o objetivo de estabelecer valores de referência que facilitem a análise, foram convencionados quatro conceitos para o IFGF: Gestão excelente (resultados superiores a 0,8); Boa gestão (resultados entre 0,6 e 0,8); Gestão em dificuldade (resultados entre 0,4 e 0,6); e Gestão crítica (resultados inferiores a 0,4).
A partir dos números do IFGF, o mapa da gestão fiscal dos municípios brasileiros mostra dados preocupantes. Como podemos constatar na figura, cerca de 74% dos municípios foram classificados em situação crítica ou difícil com relação à gestão fiscal. Algumas das questões mais graves são: cerca de 50% das prefeituras gastam mais da metade do orçamento com pessoal; mais de 50% possui dificuldade para pagar os fornecedores; pouco menos da metade dos municípios do país possui nível muito baixo de investimento, apenas 3% das receitas são destinadas a esse tipo de despesa.
Fonte: IFGF (2019).
Além disso, o Índice nos mostra que quase dois mil municípios não são capazes de gerar localmente recursos suficientes para arcar com as despesas da estrutura administrativa. Quando observamos os dados desagregados por estados, notamos ainda mais a gravidade do tema. No Piauí, por exemplo, 83% dos municípios não tem receita própria para cobrir despesas administrativas. Como segundo exemplo está a situação de Minas Gerais, com 271 municípios que também não conseguem arcar com os custos da sua máquina pública. Assim, o IFGF mostra que a crise fiscal municipal é um tema estrutural. Temos uma grande quantidade de municípios teoricamente autônomos que, na prática, dependem integralmente do governo central para continuar funcionando.
No final de 2019, o Governo Bolsonaro entregou ao Congresso a PEC do Pacto Federativo que apresenta, entre outros temas, proposta de fusões e incorporações de municípios, além de restrições para criação de novos. De acordo com a proposta, municípios de até 5.000 habitantes deverão comprovar sua sustentabilidade financeira até o dia 30 de junho de 2023. Aqueles que não consigam a comprovação requerida, deverão ser incorporados a algum município limítrofe a partir de 1º de janeiro de 2025.
Esse é um tema bastante delicado, sobretudo em ano de eleições municipais. Para além de tratar das questões de capacidade fiscal dos municípios, qualquer reforma no sentido da que foi apresentada com a PEC do Pacto Federativo pode incidir nos arranjos social e político locais. Desde uma perspectiva social, o sentimento de pertencimento das pessoas será tocado com as fusões ou incorporações de municípios. Pensando no cenário político local, a dissolução de estruturas administrativas em municípios que serão incorporados por outros, e que, portanto, deixarão de existir, implicaria na diminuição de cargos de vereadores e prefeitos e em uma consequente necessidade de reacomodação das forças políticas.
Chega às mãos dos parlamentares um tema que, sem dúvida, deve ser discutido, mas que não possui solução simples. Por um lado, está a necessidade de melhorar a capacidade fiscal dos municípios e, consequentemente, dar a força necessária que as cidades precisam para responder às demandas político-sociais. Porém, por outro lado, está uma possível inconformidade social e, principalmente, a difícil questão da acomodação das forças políticas locais. Como esse tema será encaminhado pelo Parlamento, só o futuro nos dirá…
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