Vítor Sandes – Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí (UFPI)
Raul Bonfim – Doutorando em Ciência Política (Unicamp)
Bruno Rubiatti – Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA)
É por meio do orçamento federal que políticas públicas são implementadas e, paralelamente, estruturas de combate às desigualdades são fortalecidas e aperfeiçoadas. Não existe democracia sem orçamento. Logo, a forma como as políticas são planejadas no interior do ciclo orçamentário nos permite visualizar o tipo de relação que cada Estado mantém com seus cidadãos.
No caso brasileiro, a Constituição Federal (CF) de 1988 consagrou a tríade orçamentária – Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA) – enquanto seus principais instrumentos de planejamento. O PPA tem como função primordial estabelecer as diretrizes (programas), objetivos e metas do governo para um período de quatro anos, com ênfase nos investimentos de grande vulto. A LDO é aprovada anualmente e fixa os parâmetros de elaboração do orçamento anual, estabelecendo as suas metas e prioridades. Por fim, a LOA é responsável em estimar a receita pública e fixar a despesa para cada exercício financeiro, determinando como os recursos serão partilhados. Esse modelo de planejamento permite implementar as políticas do governo, bem como atender demandas específicas, tornando possível também o acompanhamento e a avaliação das políticas.
Um dos principais ganhos estabelecidos pela CF de 1988 em relação ao orçamento refere-se à participação do Poder Legislativo nesse processo. Ainda que a elaboração das leis orçamentárias seja uma prerrogativa exclusiva do Executivo, o texto constitucional permite aos legisladores alterar as propostas orçamentárias do governo durante sua tramitação no Congresso Nacional. Esse mecanismo garante com que o orçamento sancionado seja fruto de acordos entre os dois poderes. Mesmo na LOA, em que os parlamentares podem direcionar suas emendas individuais seguindo suas preferências territoriais, os recursos precisam estar contidos nos programas e ações do PPA, de forma que as emendas individuais devem estar vinculadas à agenda mais ampla de políticas do governo.
Entretanto, desde 2015 o Congresso Nacional tem promovido uma série de alterações constitucionais capazes de ampliar sua participação no orçamento federal. Se, por um lado, o Legislativo conseguiu ampliar os recursos orçamentários a sua disposição (emendas impositivas individuais e de bancada, e emendas do relator); por outro, ele retirou parte dos mecanismos que garantiam a transparência e fiscalização das emendas orçamentárias individuais.
Em dezembro de 2019 foi aprovada a Emenda Constitucional (EC) nº 105/2019, estabelecendo a modalidade de transferências especiais. Esse tipo de transferência permite aos legisladores enviar suas emendas individuais diretamente aos estados e munícipios sem que estas estejam vinculadas aos programas e ações do governo. Além disso, a nova modalidade de transferência retira a necessidade de firmar convênio e apresentação do plano de trabalho por parte do ente beneficiado; e não especifica também a quem cabe o seu processo de fiscalização.
Em 2020, primeiro ano dessa mudança, os legisladores destinaram R$ 621 milhões de suas emendas individuais por meio de transferências especiais. Esses recursos beneficiaram 16 governos estaduais e o Distrito Federal, e mais 1.308 municípios. Para 2021, esses recursos foram triplicados. Os deputados e senadores destinaram R$ 1,973 bi por meio desse tipo de transferência. Além de 22 governos estaduais e do Distrito Federal, elas chegaram em 2.786 municípios, isto é, alcançam 50% dos entes subnacionais. É importante destacar que os valores em transferências especiais para 2021 representam apenas 20% os valores totais das emendas individuais aprovadas.
Esses dados nos permitem afirmar que, ao retirar parte das exigências de controle sobre as emendas individuais, os recursos das emendas passaram a ter uma maior capilaridade sobre o território nacional, alcançando mais munícipios. As localidades beneficiadas com as transferências especiais em 2021 podem ser visualizadas no mapa abaixo.
O mapa interativo pode ser acessado por aqui.
Ainda que esse tipo de transferência tenha o potencial de levar recursos para municípios que não teriam acesso a eles de outra forma, a nova regra estimula o uso de recursos públicos fora dos instrumentos previstos para o planejamento das políticas governamentais, como o PPA, além de não garantirem que as emendas sejam utilizadas de maneira efetiva no combate às desigualdades estruturais, dada a discricionariedade da sua alocação. Outro ponto relevante sobre o debate é: até que ponto os municípios, especialmente aqueles de pequeno porte, possuem capacidade técnica para implementar políticas sem um planejamento governamental prévio? Além disso, a nova modalidade de transferência tem o potencial de minar a qualidade da nossa democracia, uma vez que ela dificulta o processo de transparência e fiscalização dos recursos públicos.
Em um contexto de queda dos investimentos do governo, o planejamento estratégico é a principal solução para que as políticas públicas cheguem naqueles que mais dependem delas. Ao aprovar a EC das transferências especiais, o Congresso Nacional percorreu uma direção oposta daquela fixada Constituição Federal, especialmente sobre o planejamento orçamentário.
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