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“Esquece esse cara, esquece o partido” - Tá, mas e agora?

Marcela Tanaka


Na última terça-feira, (07/10), em Brasília, a frase que dá o título do texto de hoje foi dita pelo presidente Jair Bolsonaro a um homem que se declarou pré-candidato pelo PSL em Recife. A referência do presidente era o seu próprio partido. Bolsonaro diz para um possível candidato de sua legenda para que “se esquecesse dele”. Se essa expressão não lhe soa absurda é porque a descrença no sistema partidário se enraizou de vez na opinião pública. Por isso, este artigo traz uma reflexão sobre a legitimidade dos partidos no Brasil e como a fala presidencial significa uma afronta ao funcionamento do processo legislativo brasileiro. A democracia representativa da forma como é a nossa não se faz sem partidos políticos. Aliás, não só a brasileira, mas todos os regimes democráticos contemporâneos se assentam no funcionamento partidário para resolver o problema do que se chama de ação coletiva.


Imaginem-se em um cenário: uma vila, na qual é necessário decidir sobre a divisão de laranjas entre as pessoas que lá residem. Algumas dessas pessoas não recebem o salário suficiente para comprar uma quantidade satisfatória de laranjas para alimentar a sua família. Outras pessoas têm famílias compostas por dois integrantes, outras com cinco, enquanto algumas são sozinhas. Qual é a distribuição justa de laranjas? O responsável pelas laranjas, então, convoca todos os moradores para decidirem conjuntamente sobre qual deve ser a proporção justa que cada um deve receber.


O problema é que nessa vila residem muitas pessoas e nem todo mundo consegue participar dessa deliberação, seja porque trabalham, seja porque têm algum outro problema que não lhes permite participar da vida política ativamente. Qual a solução adotada? Escolher um representante que tenha tempo para se dedicar à essa atividade. Esses representantes se juntam e passam a deliberar acerca da divisão justa de laranjas. Tão logo a vila cresce, novas lideranças são eleitas, aumentando aquela quantidade inicial. O responsável pelas laranjas percebe que fica cada vez mais difícil negociar individualmente com cada representante, o que significa que nada é decidido e as laranjas passam a apodrecer.


Novamente é necessário que seja tomada uma decisão para resolver esse problema. Os representantes com ideias similares, por exemplo, se unem para negociar em conjunto com o responsável pelas laranjas. Cada grupo de representantes possui um líder, autorizado a negociar em nome todos eles. Assim, o custo da negociação diminui muito, e a melhor opção para a divisão das laranjas consegue ser tomada em menor tempo. Para além disso, a escolha desses líderes permite que a pessoa que o escolheu recorra a ele caso ache injusto o número de laranjas que lhe foi dado. Esse processo é chamado de responsividade - ou accountability - entre a pessoa e o líder, ou, entre o cidadão e seu representante.


O sistema político partidário funciona de maneira semelhante. Nossa Câmara dos Deputados, a casa cuja função é representativa, atualmente é formada por 513 deputados e 30 partidos diferentes, o que pode configurar um problema de ação coletiva, dado o alto número de atores com prerrogativas de negociação. Para reduzir os custos de negociação, existe o Colégio de Líderes que é composto pelos Líderes da Maioria, Minoria, do Governo, dos partidos e dos blocos parlamentares. A função do Colégio de Líderes é fundamental para o andamento do processo legislativo, porque é lá em que se discutem e se conciliam a pluralidade de interesses representados na Câmara. Tá, mas o que isso tudo tem a ver com a fala recente do Bolsonaro?


Quando o presidente diz para que se esqueça o partido, ele não só deslegitima o próprio partido ao qual é filiado, como também o sistema partidário em geral. Não é fato recente a reprovação da população brasileira acerca da atuação dos partidos. Em 2014, segundo os dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB), 14,2% dos brasileiros considerava a performance dos partidos como Boas ou Ótimas, e 36% avaliou como Ruim ou Péssima. Assim, quando o chefe do Executivo anuncia que não precisa de partido, golpeia todo o Legislativo ao dizer que seu próprio funcionamento não é importante. Para além da evidente presunção onipotente, ao desacreditar na entidade partidária põe em xeque as engrenagens que mantém o sistema representativo funcionando. É, portanto, um ataque às instituições democráticas. Um governante que declara publicamente que pode virar às costas ao seu partido, também vira as costas aos demais e se coloca em um pedestal intocável de autoridade. Novamente, um desrespeito às instituições que garantem a representatividade dos cidadãos. Como no pequeno conto acima, é como se um dos líderes decidisse que não mais conversaria com seus companheiros e optasse por si só a distribuição das laranjas. Essa decisão unilateral lhe parece justa?


A democracia representativa precisa de instituições fortes, que atuem como freios e contrapesos aos Poderes. Para isso, o fortalecimento dos partidos é imprescindível para que não aconteça abuso ou usurpação de poder por parte de nenhum deles. A garantia da representação da população se dá pelo voto, e todo voto, queira ou não, é também um voto partidário. Reitero: não se faz política representativa sem partidos políticos. “Esquecê-los” é abrir mão de controles institucionais importantes de responsividade entre cidadão e representante. Ou seja, é como se as pessoas da vila perdessem o contato com o seu representante na negociação das laranjas. Assim, o engajamento permanente partidário não é necessário para um cidadão médio, mas o reconhecimento da importância do papel do partido nessa articulação é fundamental. O que a fala do presidente faz é, de forma irresponsável, seguir deslegitimando uma engrenagem que faz toda a diferença para a população em termos de demandas e resultados. Um governante que não preza pelo fortalecimento do seu partido tem duas saídas: a autoritária ou a expulsão.


Post-scriptum: Esse texto foi escrito pouco antes da reportagem noticiada pelo Estadão sobre a avaliação de saída de Bolsonaro do PSL. O que só aponta que o atrito gerado pela declaração de Jair Bolsonaro ecoou no sistema partidário, gerando reação do presidente do PSL, Luciano Bolivar. Portanto, a questão final é se Bolsonaro sai da legenda que o elegeu, a quem ele responderá?


Palavras-chave: Poder Executivo; Poder Legislativo; Movimento Voto Consciente; Sistema Político Partidário; Câmara dos Deputados; Partidos Políticos; PSL; Jair Bolsonaro; Colégio de Líderes; democracia representativa.


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