Joyce Luz
18 de março de 2020, a Câmara dos Deputados aprova o decreto do Executivo que reconhece o estado de calamidade pública no país. O decreto segue para a apreciação dos senadores que também votam pela sua aprovação. E desde 20 de março de 2020 o Brasil se encontra dentro da situação que chamamos de estado de calamidade pública. E o que isso significa? Ou o que mudou de lá pra cá? No artigo de hoje, caros leitores, eu conto e mostro para vocês o que está acontecendo com o orçamento público da União desde que este decreto foi aprovado.
Mas antes, é preciso esclarecer aqui alguns conceitos que são fundamentais para a nossa análise. O primeiro desses conceitos é quanto ao reconhecimento de que o estado de calamidade pública acontece sempre que uma situação anormal e incapaz de ser prevista surge. Geralmente tais situações estão ligadas à acontecimentos de catástrofes ambientais, epidemias, pandemias, situações de grave crise econômica, vulnerabilidade social, etc. O principal de ser aqui compreendido é que sempre que desastres dessa ordem acontecem, eles tendem a afetar diretamente as ações e decisões políticas de um governo – seja ele municipal, estadual ou federal. Nessas ocasiões o “normal” é que a administração pública, que os atores políticos, que os nossos representantes tenham que se organizar em tempo hábil para encontrar e aplicar respostas rápidas e eficientes ao enfrentamento da crise.
É por este motivo – o da necessidade de respostas ágeis e eficientes – que uma das medidas e ferramentas temporárias que se aplica no estado de calamidade pública é quanto ao manuseio e execução do orçamento público. Durante esse estado, é comum que a União tenha que socorrer financeiramente estados e municípios. Também é esperado que a União tenha que agir em favor daqueles que estão sendo mais prejudicados pelas circunstâncias impostas pela crise/desastre. E, por fim, também há a expectativa de que a União junte esforços para solucionar ou amenizar o problema. Todas essas ações políticas, volto a frisar, exigem do governo federal, não só agilidade, mas a combinação entre agilidade, liberação rápida de recursos e eficiência.
No Brasil, as regras da Constituição de 1988 definem que a execução do nosso orçamento é autorizativa. Em tese, o Executivo – único ator político que pode elaborar e liberar recursos – não é obrigado a gastar ou liberar os recursos tal como eles foram aprovados inicialmente. O Poder Executivo ao longo do ano orçamentário pode remanejar verbas de uma política/obra para outra através dos chamados créditos adicionais. Tais créditos devem sempre indicar a política/obra que está sofrendo corte de recursos, ao mesmo tempo em que devem indicar a política/obra que vai receber uma nova quantia para ser executada. Vale lembrar que tais remanejamentos, em situações onde a normalidade é o padrão, carecem sempre da aprovação do Legislativo.
No estado de calamidade pública, no entanto, essa história muda um pouco. O Poder Executivo fica autorizado a usar as medidas provisórias (MPV) – os tais decretos com força de lei – para realizar o remanejamento de verbas através dos créditos extraordinários (uma modalidade bem específica dos créditos adicionais). Dada a urgência em auxiliar estados, municípios e a população no geral, o presidente brasileiro emite através das MPV o remanejamento das verbas. Até o dia 07 de maio de 2020, data da aprovação do “Orçamento de Guerra”[1], o Executivo era obrigado a informar, como explicado anteriormente, a origem e destino dos recursos a serem remanejados ou cancelados. No entanto, desde a vigência do “Orçamento de Guerra” o Ministério da Economia só é obrigado a informar a fonte dos cortes a cada 30 dias.
Mas vamos ao que interessa! Abaixo o Gráfico 1[2] apresenta os programas/políticas que, por decisão do Poder Executivo, tiveram mais do que 5% de seus recursos, inicialmente aprovados, cancelados ou remanejados para o combate ao coronavírus no Brasil.
Todos os programas/políticas com mais recursos cancelados ou remanejados deveriam chamar a nossa atenção. Nenhum deles pode ser considerado como não importante para o desenvolvimento tanto econômico, quanto social do nosso país. Em um país tão desigual como o Brasil, a manutenção e o pleno funcionamento desses programas/políticas são quase que obrigatórias, essenciais para a construção de uma sociedade mais igual, mais plural, mais humana.
A título de encaminhar esse texto às suas considerações finais, mostro abaixo as principais ações ligadas a tais programas/políticas que irão sofrer – e já estão sofrendo – com tais cortes e remanejamentos de recursos.
Ainda que os cancelamentos e remanejamentos de recursos atendam e cumpram com as atitudes e respostas rápidas que o atual e temporário estado de calamidade do Brasil exige, nos falta, infelizmente, a eficiência. A eficiência, sobretudo, de um Poder Executivo que reconheça, enquanto gestor político, mas também enquanto ser humano, que seu povo é plural. Que seu povo mora nas periferias. Que seu povo não tem educação. Que seu povo passa fome. Que seu povo não tem água encanada. Que seu povo não tem onde morar.
Que seu povo sofre com as secas. Que seu povo sofre com a violência. Que seu povo é e, vai ser ainda mais, DESIGUAL quando a crise do coronavírus passar.
Se por um lado o governo federal ainda permanece sem um plano de respostas e soluções que o estado de calamidade pública imposto pelo coronavírus exige, por outro lado parece existir um plano claro para o agravamento da nossa desigualdade social. O povo brasileiro entrará, ainda mais, em um estado permanente de calamidade pública.
[1] PEC 106/2020 https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2242583
[2] O Gráfico foi construído a partir da análise de todas as MPVs que foram emitidas desde o dia 13/03/2020 até o dia 04/06/2020 e cujo teor dizia respeito à abertura de Créditos Extraordinários para o combate à crise do coronavírus. Foram coletados até o dia 07/05/2020 toda fonte de cancelamento e de aplicação do remanejamento de verbas. Desde o dia 08/05/2020 só foram coletadas as políticas que receberam o remanejamento de verbas. A indicação do cancelamento deve seguir as novas instruções da PEC 106/2020 e ser informada uma vez por mês ao Congresso Nacional. As MPVs podem ser encontradas em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1/medidas-provisorias
Palavras-chave: Movimento Voto Consciente, Poder Legislativo, Poder Executivo, pandemia, políticas públicas, coronavírus, calamidade pública, recursos, Bolsonaro, governo federal, Câmara dos Deputados, Senado.
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