Ana Claudia Farranha
Esse texto tem por título a música de Gerônimo, cantor baiano conhecido por diversas canções, inclusive essa que ficou famosa em carnavais dos anos 90, com seu ritmo de axé e exaltando aspectos da luta e da cultura negra.
Por que escrever um artigo às vésperas da eleição com o título dessa música? Meu objetivo, nesse caso, é retomar um debate pulsante na eleição de 2022: representação de negros no processo eleitoral, e, especialmente, destacar a autodeclaração do candidato Antônio Carlo Neto – ACM como pardo junto a Justiça Eleitoral. Como no ritmo do Axé o assunto mexe com a gente.
Primeiramente cabe compreender como e o porquê do tema da autodeclaração no atual processo eleitoral. A Emenda Constitucional Número 111 estabeleceu que “para efeito de distribuição entre os partidos do fundo eleitoral partidário e do Fundo Especial de financiamento de Campanha (FEFC), os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados nas eleições realizadas de 2022 a 2030 serão contados em dobro (artigo 2º, da EC 111). A instituição desse mecanismo se propõe a incentivar o aumento de candidaturas de mulheres e negros, o pode vir a funcionar como um mecanismo para a correção de distorções no processo de representatividade.
Em segundo lugar, conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral consultados em 21 de setembro de 2022, as candidaturas de mulheres somam 34% dos candidatos e de homens cerca de 66% dos inscritos e inscritas. Do ponto de vista da autodeclaração racial, 48,2% dos candidatos e candidatas se declaram brancos, enquanto 36,11%, se declara pardo e 14,11% se declaram preto. Pela primeira vez na história, desde que a autodeclaração racial foi instituída pelo TSE, em 2014, pardos e pretos, que são denominados negros, somados (50,22%) ultrapassam a população branca.
No Brasil, a ampliação do debate sobre a questão racial tem proporcionado um aumento no número de pessoas que se autodeclaram como pardos e pretos e caracterizam a população negra, e esse agrupamento dá um conteúdo político e social ao termo “raça”, cumprindo um importante papel, pois permite identificar desigualdades (mas também diferenças) no acesso da população negra a bens, serviços e reconhecimento de direitos e garantias fundamentais. Construir esse signo (negros = pretos e pardos) é extremamente importante em um país cujas raízes da escravidão apontam mazelas, subalternidade, maus tratos entre tantos episódios da vida pública envolvendo homens e mulheres negras.
Entretanto, alguém pode perguntar: quem é negro no Brasil?? Em rodas de especialistas, militantes e defensores da igualdade racial uma resposta fácil de obter é: - “pergunte a polícia, pois ela sabe quem é”. Essa é uma clara alusão ao tratamento violento recebido por negros em tantas situações que envolvem a dimensão da segurança. Nesse caso, “saber quem é negro” é desconfiar, prejulgar e condenar (na maioria das vezes, sem o devido processo legal) baseado na cor da pele, no lugar social, no preconceito racial.
Buscando a reparação dessa situação, os anos 2000 trouxeram com mais força o estabelecimento de ações afirmativas na Administração Pública brasileira. Duas leis são emblemáticas para a questão: a Lei 12711/2012, que foi regulamentada pelo Decreto 7824/2012, cuja temática versa sobre a reserva de vagas em universidades públicas federais para negros e estudantes vindos da escola pública e a Lei 12990/2014, que reserva 20% das vagas em concurso público para candidatos autodeclarados pretos e pardos.
Juntamente à construção de uma modulação jurídica para o reconhecimento da desigualdade racial, a pergunta quem é negro no Brasil permanecia. Muitas a faziam com o intuito de desacreditar as medidas reparatórias e afirmar “somos todos pretos e pardos”, retomando o mito de uma “democracia racial”. Outros, com algum grau de razão, afirmavam que muitas pessoas se autodeclarariam pretas ou pardas em alguma atitude para trapacear o mecanismo institucional e se beneficiar. Isso aconteceu? Sim!!! Mas, isso não impediu que as medidas de promoção da igualdade racial avançassem e trouxessem resultados importantes para o cumprimento dos objetivos dessas leis. Mecanismos de correção e aperfeiçoamento do sistema, como a criação de comissões de heteroidentificação racial (aquelas que examinam se a autodeclaração do candidato espelha a realidade de sua declaração) foram implementados como forma de evitar a banalização das medidas de identificação racial.
O que isso tudo tem a ver com a autodeclaração como pardo do candidato ao governo do estado Antônio Carlos Magalhães Neto (ACM Neto)? Se é auto declaratório, qual o problema de se auto identificar como pardo? Não me cabe julgar a intenção do candidato, pois diria um antigo professor de direito penal que tive: “quem julga a intenção é Deus”. Mas, talvez, o episódio deixe pelo menos três pontos para o próximo período:
a) A necessidade de desenvolvimento de mais e melhores mecanismos de identificação racial, complementares a autoidentificação. A implementação das leis e regulamentação mencionadas acimas pode ser um bom ponto de partida, mas, há que se considerar o acúmulo de experiencias no tema, as especificidades do processo eleitoral e propostas que negros e negros têm sobre a questão.
b) A necessidade de uma rigorosa avaliação da implementação da EC no. 111, identificando como as candidaturas de mulheres e negros se beneficiaram da medida e em que pontos as questões raciais que atravessam a representação política merecem ser melhor abordadas. Nesse aspecto, a pauta é vasta e vai além da autoidentificação.
c) A ideia de que não se trata apenas de uma declaração formal, de escolha individual do candidato ou candidata, mas, a autodeclaração reporta processos de reconhecimento de desigualdades raciais e expressa processos de luta em que ter um coração pela liberdade é uma enorme crítica ao processo político e social a que negros e negras estão submetidos no Brasil. A frase do cantor Gerônimo – que inspira o título desse artigo - tem toda razão ao afirmar quem é Negão!!!
Créditos da imagem: Raphael Müller | Ag. A TARDE
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