Ana Paula Massonetto
Em meio à pandemia do coronavírus, emerge uma onda de corrupção pelo país, mas o que surpreende mesmo são os processos de impeachment de governadores na ordem do dia.
Os governadores Wilson WITZEL (RJ) e Carlos MOISÉS (SC) tiveram processos de impeachment aprovados nas últimas semanas pelas Assembleias Legislativas e, em breve, serão julgados por Tribunais Mistos em seus respectivos estados. Em agosto, o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC) - assim como Crivella, o Prefeito do Rio -, se livrou por pouco, e conseguiu o arquivamento do processo de impeachment contra si.
Processos de impeachment na esfera municipal (cassação de prefeitos) podem ser mais comuns do que se imagina. Em sua tese de doutorado, Bruno Pessoa descobriu que, de 335 Câmaras paulistas que responderam à sua pesquisa, em 115 delas já havia tramitado processos de cassação (34%) e 58 prefeitos foram cassados (11,6%), entre 1993 e 2012[1].
Mas no caso dos governadores, se o impeachment de Witzel e/ou Moisés forem confirmados, serão os primeiros desde 1957. Surpreendem pois sinalizam, em alguma medida, uma ruptura no padrão de relações entre Executivo e Legislativo, conhecido como ultrapresidencialismo estadual e caracterizado pela força dos governadores e pela subserviência dos legislativos.
Tradicionalmente, a governabilidade nos estados é ancorada na lógica de carreira dos parlamentares. Nesta interação, os governadores, detentores dos recursos da máquina estadual, distribuem cargos, recursos financeiros e outras moedas (conhecidas como pork barrels) em troca de apoio no parlamento e eleitoral, e assim se mantém no poder, em muitos casos, por décadas.
É pressuposto da governabilidade, portanto, a capacidade de negociação e de liderança dos governadores. Mas, nos impeachments sob análise, o que aproxima os governadores Witzel e Moisés dos ex presidentes impichados Fernando Collor e Dilma Roussef é exatamente a dificuldade de formar e de manter uma base de apoio no Legislativo. Por diversas razões, seja por preterir, menosprezar ou por falta de habilidade de articulação política, seja por privilegiar perfis técnicos, por evitar a política de pork barrels ou restringi-la para poucos, estes chefes do executivo tiveram dificuldades de negociação com o legislativo.
Esse mecanismo, cerne do presidencialismo de coalizão, é crucial em todas as esferas da federação. Bruno Pessoa concluiu em sua pesquisa com cassações na esfera municipal, que a deterioração da relação do Prefeito com o Legislativo aumenta significativamente as chances de sua cassação.
Porém, se nos estados, durante 60 anos, a governabilidade foi assegurada com relativa tranquilidade pelos governadores, cuja predomínio sobre o legislativo costuma ser mais forte comparativamente à esfera federal, o que tem de novo no cenário que está desequilibrando essa balança de poder?
Especulando, ao menos 3 eixos recentes de poder podem estar influenciando essa variação no padrão e rupturas no ultrapresidencialismo estadual, desestabilizando este tradicional arranjo de forças, quais sejam: a) bolsonarismo; b) redes sociais; c) e órgãos de controle, leia-se Ministério Público (MP) e Polícia Federal (PF).
No primeiro eixo, Witzel e Moisés, ambos eleitos na esteira do Bolsonarismo, com discurso anti corrupção; ambos novatos na política, sem trajetória e sem base de apoio política e popular sólida, se vêem agora isolados em meio à denúncias de corrupção. No mesmo cenário, a ascensão das bancadas do PSL e da direita nas Assembleias contribuem, em conjunto com a renovação parlamentar, para o aumento da fragmentação partidária. Estas bancadas, também eleitas na esteira do Bolsonarismo, têm se mostrado pouco coesas (pra não dizer erráticas), abalando arranjos tradicionais no interior dos parlamentos (só a Alesp parece ungida na imutabilidade, um estudo à parte).
Em paralelo, as redes sociais conectam os parlamentares diretamente com os eleitores (e com os votos) e, especialmente para os novatos na política, proporciona uma certa independência em relação aos mecanismos da política tradicional, permitindo-os dispensar pork barrels, ao menos em alguma medida.
Nesta conjuntura, assistimos o crescimento do protagonismo dos parlamentares na fiscalização do Executivo. Na Alerj, por exemplo, denúncias dos parlamentares ao MP sobre irregularidades nos contratos emergenciais estiveram no centro das Operações Mercadores do Caos, Operação Placebo e Operação Tris in Idem, que levaram ao afastamento de Witzel do cargo de governador. O próprio Witzel, em sua defesa no processo de impeachment, elogiou o trabalho da Comissão COVID-19 da Alerj, que investiga tais contratos, sugerindo que as investigações poderiam ter começado mais cedo, inclusive (embora ele a tenha vetado e atrasado seu início, que se deu após a derrubada do veto pela Casa).
Para completar, Ministério Público e Polícia Federal desempenham papel central, senão decisivo. Embora os crimes de responsabilidades atribuídos aos governadores tivessem inicialmente fundamentados em atos administrativos, novas denúncias, inclusive de corrupção, pululam após o avanços e descobertas das operações policiais. Acompanhando de perto a atuação do MPRJ e da Defensoria Pública do RJ, por exemplo, constata-se o trabalho hercúleo que dezenas de promotores têm empreendido para dar conta de investigar a corrupção, que se alastra tão rapidamente quanto o coronavírus.
Não obstante, em que pese a extrema relevância e imprescindibilidade do trabalho destes órgãos no combate à corrupção, uma constatação é necessária e há uma pergunta que não cala.
A constatação: práticas de gestão e práticas políticas anteriormente naturalizadas passaram a ser criminalizadas. As pedaladas de Dilma Roussef, assim como o aumento aos procuradores concedido pelo governador Moisés (SC) poderiam derrubar praticamente todos os chefes do executivo, em todas as esferas. O MPRJ e a PF acusam agora o presidente da Alerj e o Executivo de distribuírem pork barrels para parlamentares. Em que pesem os supostos desvios de recursos para campanhas ou interesses pessoais, e por mais que seja questionado moralmente, pork barrel é o pressuposto do presidencialismo de coalizão. É a essência da política.
Criminalização de pork barrels ou presidencialismo de coalizão? Banalização do impeachment ou fortalecimento da atuação fiscalizatória do parlamento? Reequilíbrio dos check and balances ou ingovernabilidade?
Muita coisa pra um artigo só, mas o imbróglio é grande mesmo. Os arranjos institucionais estão esgarçados. Tem muito chão, muita ação e muita análise pela frente.
Para concluir, por hora, a pergunta que não cala: quem define quem será o investigado da vez? Quem vai para o próximo paredão?
Sejam os parlamentares, as redes sociais ou os órgãos de controle, fica a dica: #sigaodinheiro.
[1] https://jornal.usp.br/atualidades/cassacao-de-prefeitos-e-motivada-por-ma-relacao-com-legislativo/
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