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O Legislativo na pandemia: deliberações sobre as relações de direito privado

Humberto Dantas e Luiz Gustavo Lopez Mide


O Brasil, bem como grande parte do mundo, enfrenta com o novo coronavírus uma crise sem precedentes na história recente. Para além dos efeitos nefastos na saúde pública, com o aumento diário do número de casos confirmados de contaminação e do total de mortes, a pandemia impacta a sociedade em diversos níveis: sujeita os indivíduos a medidas de “isolamento social” até então inimagináveis, impacta as relações de trabalho e, é claro, apresenta reflexos na economia e nas relações privadas.



Para todos esses desafios e desdobramentos, a resposta do Poder Público tem de ser rápida e eficiente, visando sempre ao abrandamento dos impactos da pandemia. Foi nesse contexto que, no longínquo dia 30 de março, o senador Antônio Anastasia (PSD/MG) apresentou o PL nº 1.179/2020, propondo-se a estabelecer o “Regime Jurídico Emergencial e Transitório” de relações de direito privado para o contexto da pandemia. O objetivo: estabelecer disposições transitórias e excepcionais regendo uma série de relações tipicamente privadas que de uma ou de outra forma foram, são e serão afetadas pela pandemia (nos termos da justificativa do próprio PL: “preservar as relações jurídicas e proteger os vulneráveis”).



Nos dias que se seguiram à apresentação do projeto, foram propostas pelos senadores nada menos do que 88 emendas ao texto original. Em sessão deliberativa remota realizada na mesma semana, em 3 de abril, foi aprovado em Plenário o substitutivo apresentado pela relatora Simone Tebet (MDB-MS). O PL foi, então, submetido à revisão da Câmara dos Deputados em 13 de abril.



A tramitação na Câmara dos Deputados foi menos célere. Com 58 novas emendas propostas, somente um mês após o recebimento, em 14 de maio, em sessão deliberativa extraordinária virtual, foi aprovado novo substitutivo ao PL, relatado pelo Deputado Enrico Misasi (PV-SP). O novo substitutivo foi remetido ao Senado no dia seguinte e rejeitado em sessão remota ocorrida poucos dias depois (19 de maio).



Pouco antes de completar dois meses de sua apresentação, em 21 de maio, o PL foi, então, enviado à sanção presidencial. Estabelecendo como marco temporal inicial o dia 20 de março, data da publicação do Decreto Legislativo Federal nº 6, que reconheceu o estado de calamidade pública, a proposta dispunha sobre (i) prazos prescricionais, (ii) realização de reuniões e assembleias por associações, sociedades e fundações, (iii) revisão e encerramento de relações contratuais, (iv) direitos de consumidores, (v) locação e despejo, (vi) usucapião, (vii) regras para condomínios edilícios, (viii) direito da concorrência, (ix) direito de família e de sucessões, (x) transporte remunerado privado individual de passageiros, (xi) flexibilização de normas de trânsito e (xii) prorrogação de prazos da Lei Geral de Proteção de Dados.



O “Regime Emergencial” foi afinal estabelecido com a sanção da Lei nº 14.010/2020 no último dia 10 de junho, e entrou em vigor em 12 de junho, data de sua publicação. Foram vetados pelo Presidente Jair Bolsonaro oito dos 21 artigos constantes da proposta encaminhada pelo Congresso Nacional. A proporção dos vetos é considerável (superior a 1/3 dos artigos propostos), o que, evidentemente, coloca em xeque boa parte da proteção extraordinária que o Poder Legislativo pretendeu garantir às relações privadas no período excepcional de pandemia.



Dentre as maiores controvérsias nos pontos vetados pelo Presidente da República estão a restrição das hipóteses de concessão de decisões liminares para desocupação de imóveis urbanos em ações de despejo e a concessão de poderes excepcionais a síndicos para, por exemplo, restringir a utilização de áreas comuns de condomínios e restringir ou proibir a realização de reuniões e festividades, inclusive nas áreas particulares dos proprietários e/ou moradores.



Quanto à primeira medida, as hipóteses restringidas pelo legislador evidenciam sua tentativa de proteger famílias atingidas, ainda que indiretamente, pelas consequências econômicas da pandemia, evitando que elas pudessem ser despejadas por ordem liminar, isto é, por decisões judiciais ainda não finais. Para além disso, despejo, sobretudo liminar, não parece ser medida compatível com a necessidade até o momento reverberada pelas autoridades de que os cidadãos, sempre que possível, fiquem em casa.



Já o objetivo da segunda medida indicada era visivelmente desenvolver um caminho mais dinâmico e potencialmente mais eficaz para o estabelecimento de normas restritivas aos moradores de condomínios, com o intuito de prevenir a propagação do novo coronavírus. Com o veto, caberá aos próprios condôminos, por assembleia, deliberar pela limitação de seus direitos de usar as áreas comuns e particulares para, por exemplo, realização de festas – outro ponto desaconselhável nesse instante.



As razões de veto do Presidente da República já foram encaminhadas ao Congresso Nacional, que ainda terá a oportunidade de as apreciar em sessão conjunta. Importante salientar que desde o início de seu governo Bolsonaro teve vetos derrubados, ao contrário de seus antecessores quando completados 18 meses no poder. Resta saber quais desses vetos a maioria absoluta dos deputados e senadores optará por manter ou rejeitar, bem como é importante observar se a aproximação com o Centrão dará ao Planalto algum tipo de respiro em sua relação com o Congresso Nacional.



Palavras-chave: Movimento Voto Consciente, Poder Legislativo, Poder Executivo, pandemia, coronavírus, Câmara dos Deputados, Senado, Planalto, Bolsonaro, Congresso Nacional, vetos, projetos de lei.

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