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O PIOR sentido da conivência

Humberto Dantas



Quando Max Weber disse que o Parlamento era a morada da ética da convicção, tendo no parlamentar seu agente central, eu imagino que ele estivesse escrevendo para o racional e contido alemão. Para um brasileiro, liberdade de convicção é convite ao ilimitado.

Dito isso, ao assegurar ao parlamentar o direito quase absoluto de fala, esquecemos de dizer que toda e qualquer liberdade em ordens democráticas possui limites. Esses balizadores fazem os alemães criminalizarem quem defenda o nazismo, por exemplo. Assim, a liberdade de expressão de parlamentares, ou mesmo de cidadãos comuns, deve sempre esbarrar em valores, sendo tais princípios as bases para o desenvolvimento daquilo que desejamos coletivamente.


Diante de tal ponto, o que é mais importante numa sociedade: o que quero para mim, ou o que queremos para nós? Há quem acredite exclusiva e piamente no primeiro ponto, enquanto eu aposto cegamente no segundo, a despeito de respeitar parcialmente o primeiro – que será fortemente considerado apenas no instante da construção dos limites plurais. Combinou no coletivo que existe limite, ele será aplicado. E é assim que, em tese, deveria funcionar no Brasil.


Olhe para a Constituição e considere o fato de que a absoluta “liberdade de expressão” tem como limite afrontas ao Estado Democrático de Direito e às intolerâncias civis, por exemplo. Na vida comum, isso em tese deveria ser fortemente regulado pela justiça. Mas tome a lei contra o racismo como exemplo: ela completou 30 anos em 2019 e praticamente ninguém nesse país RACISTA foi condenado por essa aberração. Passamos a mão, fingimos não existir, disfarçamos, desenquadramos, atenuamos, perdoamos e seguimos. E esse é apenas um exemplo.


No Parlamento, o que limitaria os arroubos são os Conselhos de Ética. E aqui a coisa piora de forma absoluta. Existem muitos parlamentares nas cidades, estados e na União cassados por quebra de decoro parlamentar. Mas o que exatamente é isso? O que a ocasião desejar, ou seja: trata-se normalmente de um julgamento político que pode punir algumas aberrações, mas muitas vezes tende a condenar inimigos de grandes grupos políticos e abafar crimes escancarados contra valores basilares de nossa sociedade. Sacrificamos valores coletivos em nome da individualidade parlamentar. Ou será que eles sempre falam “pelos seus”?


Note que nos dois últimos parágrafos deixei claro algo essencial: nos falta o estabelecimento de limites claros a parâmetros individuais de posicionamentos, punindo de acordo com a lei o que nos afronta coletivamente. Assim, educação e justiça são o binômio elementar de uma lógica democrática. Algo que levou Norberto Bobbio a escrever o subtítulo de seu livro “O futuro da Democracia” nos seguintes termos: “por uma defesa das regras do jogo”, bem como a reforçar ao longo da obra que a “educação política é a promessa não cumprida da democracia”.


Jair Messias Bolsonaro, assim como sua prole, simbolizam essa distorção. O comportamento parlamentar do atual presidente uniu uma produção quase nula à convicção absoluta em valores absurdos. O fenômeno sempre foi corroborado por seus eleitores, amenizado por líderes partidários sedentos por seus votos e minimizado por pares limítrofes. Em tempos recentes, entre 2002 e 2016, o Conselho de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados, um organismo corporativista, pouco afeito à regra e por vezes impactado pelo sensacionalismo da opinião pública, recebeu quatro representações contra o então deputado que hoje preside a nação:


  • 28/06/2016 – por invocar a figura de um torturador no seu voto pelo impeachment.

  • 16/12/2014 – por fazer apologia ao estupro em discussão com uma mulher.

  • 25/09/2013 – por agressão física contra senador, em ambiente da Comissão da Verdade.

  • 15/06/2011 – por crime de racismo em resposta dada a programa de TV.


Perceba o conjunto: a inconstitucional defesa das mazelas da ditadura, a lógica assombrosa do crime contra a mulher, a medieval agressão física e o cáustico racismo. Nada disso foi capaz de parar Bolsonaro, que sempre “autêntico”, manteve seu posicionamento acerca de uma série de posições – a despeito de diversos de seus pares também serem acalentados por igual tolerância. Ademais, para alavancar a audiência de uma emissora de TV frágil, durante anos passados seus pensamentos viraram atração folclórica, como se fosse divertido assistir àquilo. Pena que os espectadores não tinham como objetivo rir, mas sim reforçar valores que certamente resultaram em conivência e simpatia às aberrações ditas em tom de bravatas rasas.


Assim, Bolsonaro e seu casamento com o que existe de mais deprimente na sociedade é o resultado de milhões de sentimentos avigorados e do extrapolar de dois fenômenos absolutamente perigosos em qualquer ordem democrática: o encontro sombrio das crenças pessoais ilimitadas - algo que Sérgio Buarque de Holanda usou para caracterizar o Ibérico e o Homem Cordial em Raízes do Brasil e; a falta de limites associados à educação necessária para o estabelecimento FORMAL de valores. A combinação explosiva está aqui: sentimentos deprimentes, convicção “de mais” e valores “de menos”, misturados e levados às massas, seja pela TV, seja pelas ilimitadas redes sociais, que Umberto Eco já caracterizava como uma sombria caixa de Pandora a desnudar o que existe de pior.


As frágeis agendas das políticas de educação no Brasil – e em tantos outros lugares do mundo -, a ausência de um sentimento de justiça atrelado à lógica de punibilidade de acordo com a lei, um Parlamento covarde, corporativista e leniente, assim como uma sociedade afeita às ilimitadas idiotices individuais nos levaram a ter, mesmo que democraticamente em termos eleitorais, uma figura assombrosa e descompromissada na cadeira maior do Palácio do Planalto. Um ex-militar praticamente expulso do exército que durante décadas se escondeu atrás da perigosa liberdade absoluta de expressão dada aos parlamentares, algo ameaçador quando misturado à oportunística demonização do que existe de mais nobre entre nós, a política. Bolsonaro serviu-se da liberdade advinda do trauma e do medo à censura, frutos de um regime aterrorizador que ele louva com orgulho, para dizer e pensar o que seus valores esdrúxulos e miseráveis desejavam. E de piada infame, ridicularizada por seus coleguinhas de Parlamento e partidos, tornou-se narrativa aterrorizadora com direito a sede de vingança. E aqui ele não é apenas um monstro solitário ao estilo Jason ou coisa do tipo, mas carrega consigo o “brilhantismo” de filhos parlamentares compromissados com seus “valores” e formas de atuação, bem como uma horda de frustrados, uma legião de zumbis mastigados pelo que o mundo nos traz de pior.



É isso o que nos leva ao flerte absoluto com o autoritarismo de parte inconsequente de alguns militares amargurados na reserva e com o fétido cheiro de esgoto que emana de bocas e mentes apodrecidas pelo que há de mais putrefato em matéria de valores – incluindo aqui terraplanistas, aloprados construtores da teoria do caos, negacionistas de toda ordem etc. O deprimente parlamento, a não formalização educacional dos nossos princípios e a frágil justiça são coniventes com tudo isso, deixando escapar um odor asqueroso que durante 21 anos nos sufocou de maneira quase absoluta e que imaginávamos estar enterrado desde 1985. Quando perdemos o parâmetro que nos baliza e deixamos que vozes mórbidas repitam sem punição o que existe de pior, o resultado não pode ser outro: trocamos o coletivo esforço da Constituição Federal de 1988 pela desenfreada idiotice de uma limitada liberdade de expressão, que encontra nas leis limites claros e ignorados. Parabéns Brasil.



Palavras-chave: Movimento Voto Consciente, Poder Legislativo, Poder Executivo, Estado Democrático de Direito, Bolsonaro, Jair Bolsonaro, autoritarismo, Parlamento, Congresso Nacional.

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