Luciana Santana e Isadora Carvalho
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 tem provocado alvoroço no meio político. Instaurada na última terça-feira (27) após decisão judicial proferida pelo ministro Barroso em face do Mandado Segurança nº 37.760 (MS), com pedido de liminar, formulado pelos senadores Alessandro Vieira e Jorge Kajuru Reis da Costa Nasser, ambos filiados ao Cidadania, tem o propósito de investigar as omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia, o agravamento da crise sanitária no estado do Amazonas, além da destinação dos recursos federais enviados para estados e municípios.
Desde a primeira reunião, um dos problemas apresentados foi a indicação do senador Renan Calheiros (MDB- AL) ao cargo de relator da comissão, já que seu filho, Renan Filho (MDB- AL), é governador do estado de Alagoas e, em tese, pode ser investigado no caso, o que geraria conflito de interesse decorrente da relação consanguínea. O senador, inclusive, já se declarou parcial caso haja alguma investigação que envolva diretamente os recursos encaminhados para o seu estado. Na ocorrência de algum fato concreto nessa direção, a análise será feita por outros membros da comissão, sem qualquer interferência do relator.
Às vésperas da instauração da CPI, foi deferida pelo juiz federal Charles Renaud Frazão de Moraes a ação popular ajuizada pela deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), para invalidar o nome do senador para relatoria da comissão. Horas depois, por meio de suas redes sociais, o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (DEM/MG) declarou que “A escolha de relator cabe ao presidente da CPI. Trata-se de questão do Parlamento, que não admite interferência de um juiz. A preservação da competência do Senado é essencial ao estado de direito. A Constituição impõe a observância da harmonia e independência entre os Poderes.”.
Com Calheiros provisoriamente impedido, a Advocacia do Senado Federal protocolou recurso no Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1) para reverter a situação. Em resposta, sob o fundamento de manutenção da ordem, o desembargador Francisco de Assis Betti, vice-presidente em exercício do TRF-1, suspendeu a execução da medida judicial. A instauração da CPI se manteve, bem como dos nomes indicados pelos partidos. O senador Omar Aziz (PSD-AM) foi eleito para presidente da Comissão da Covid-19, bem como do seu vice, o senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP), e Renan Calheiros foi anunciado como relator, conforme previamente acordado.
Em que pese a decisão final tomada pelo TRF1, ainda há questionamentos sobre o tema. Afinal, qual a diferença entre a decisão proferida pelo ministro Luís Roberto Barroso, depois referendada pelo plenário do STF, e a decisão deferida pelo juiz federal Charles Renaud Frazão de Moraes? Ainda que o STF, enquanto guardião da Constituição Federal (CF), tenha capacidade para interferir no Legislativo, não parece ter sido esse o primeiro caso. Em termos práticos, diante da inércia do Presidente do Senado Federal, a decisão do ministro Barroso somente deu cumprimento ao §3º do art. 58 da CF/88 , que prevê a instauração de CPI para garantir o direito parlamentar das minorias, já que os requisitos necessários já haviam sido obtidos com o mínimo de ⅓ de assinatura dos senadores. Trata-se, portanto, da defesa do Estado Democrático de Direito (art. 1º, CF/88), caráter importantíssimo da República Federativa do Brasil, que não apenas dá voz às maiorias, mas também respeita a vontade e demandas da minoria, enquanto parte integrante do povo e dotada de poder para tal.
No que condiz à decisão proferida pelo juiz federal, é perfeitamente plausível considerá-la afronta à autonomia do Poder Legislativo, pois o juiz federal tentou usurpar os poderes do Senado ao interferir na composição da Comissão, o que está explicitamente regulamentado no art. 89, III, do Regimento Interno da Casa.
A tentativa de controle jurisdicional na ordem interna do Parlamento configura grave ameaça aos rumos das investigações, que também têm sofrido intimidações do Poder Executivo, considerando que o Presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), desde o momento da decisão do ministro Barroso, tem tratado-a como fruto de “politicalha” entre o Supremo e o Senado.
Então, qual o problema que envolve esse imbróglio? O problema é o relator indicado ou a interferência governista nos rumos da CPI? Este é um aspecto a ser considerado. Como se não bastasse a decisão do juiz federal e outras tentativas do governo em alterar os indicados para a comissão, na última quarta-feira (28), foi apresentado novo mandado de segurança (MS) ao STF. De autoria dos senadores Marcos Rogério (DEM-RO), Eduardo Girão (Podemos-CE) e Jorginho Mello (PL-SC), a ação também contesta a indicação de Renan Calheiros ao cargo de Relator da CPI e de Jader Barbalho (MDB/PA) como membro do colegiado. Os impetrantes exploram novo argumento: a atuação dos parlamentares em CPI não está centrada no poder de legislar, mas sim no exercício da função atípica, que é a de caráter investigatório.
A tal fundamento assiste razão, considerando que o §3º do art. 58 da CF/88 é claro ao determinar que os membros das comissões parlamentares de inquérito possuem poderes de investigação próprios das autoridades judiciais que, por sua vez, são impedidos de atuar em processos no quais a parte for parente consanguíneo (IV, art. 144, do NCPC). Contudo, ainda que seja relevante, não se pode deixar de falar no erro no qual os senadores estão empenhados em repetir, que é o do pedido de interferência do STF em procedimento de ordem interna do Senado, quando este tem capacidade e autonomia para a resolução de qualquer dessa natureza, como a apresentada nesta última ação. E quanto a esse aspecto, já tivemos posicionamentos no Senado em defesa da permanência de Calheiros como relator da CPI.
Nesta quinta-feira (29), o Ministro Relator deste novo MS, Ricardo Lewandowski, indeferiu o pedido liminar de suspensão do ato que colocou Calheiros na Comissão. A decisão não se mostra apenas previsível, como também acertada. Afinal, conforme se verifica nos arts. 403 ao 408 do Regimento Interno do Senado, não seria nada razoável o deferimento do pleito, pois qualquer decisão nesse sentido, configuraria grave ofensa à Constituição.
Assim, independentemente de eventos futuros, não há dúvidas que tem ficado cada vez mais evidente que o problema em si não é o relator indicado, mas a própria CPI e seus desdobramentos, que tem incomodado o governo e seus aliados. Se quem não deve não teme, era de se esperar menos interferências.
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