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O sistema e a cultura

Humberto Dantas



O sistema proporcional brasileiro é idealmente muito bonito e significativo. Talvez eu não concorde tão enfaticamente com isso, mas preciso dessa afirmação para te levar para uma zona de desconforto. Faz anos que as pessoas insistem em dizer que o modelo de eleição de deputados e vereadores no Brasil é injusto. E é por isso que estou escrevendo esse texto: para dizer que não é. O problema não é o sistema, mas sim o que fazemos com ele. E tenho para mim que, nesse caso, não há reforma das leis que dê jeito. Acompanhe o que estou a defender.



Majoritariamente elegemos todos os cargos do Poder Executivo no país. Prefeitos e vices, governadores e vices, e presidente e vice. Essa eleição tem por máxima a ideia de: o vencedor leva tudo. Mas pense: essa chapa, essa dupla composta por titular e vice, dificilmente será eleita com a totalidade dos votos do eleitorado. Pense numa eleição em que o primeiro colocado tenha 30% dos votos em primeiro turno. Ele pode vencer assim, a despeito de termos ou não segunda rodada, pois em cidades com menos de 200 mil eleitores prefeitos e vices são eleitos em turno único. Vamos falar no que é justo: faz sentido alguém com menos de um terço dos votos controlar 100% do Executivo? Faz. A regra é assim. Mas nada existirá para contrabalancear e dar representatividade no poder para, por exemplo e em tese, os 70% restantes? Vamos lá.



O sistema proporcional preenche a imensa maioria das vagas no Legislativo – a exceção é apenas o Senado. Assim, no município o poder "total" do prefeito será contrabalanceado pela Câmara Municipal. No estado esse papel caberá à Assembleia Legislativa em relação ao governador. E no plano federal, em termos proporcionais, a Câmara dos Deputados cumpre esse papel com relação ao Presidente. Sei que na esfera nacional, dada a forma como os partidos se relacionam nos estados e elegem a bancada de deputados em cada unidade, carrega-se uma complexidade federativa, mas vamos adiante. Sem perder o foco.

Desse modo, proporcionalmente um governador eleito com 40% dos votos válidos no primeiro turno, e depois 51% no segundo, pode ter que lidar com uma assembleia onde seu partido, ou seu grupo político, saia das urnas com algo como 40% das cadeiras – lembrando de que as eleições proporcionais têm turno único e ocorrem concomitantemente à escolha do Executivo em sua primeira rodada. Esse governador do exemplo não teria, assim, maioria para aprovar suas ideias. Não? Inicialmente talvez, mas entra em cena a política. Suponhamos que ele seja radical em termos de suas ideias. Negociar será sinônimo de atenuar, de ouvir dos parlamentares que nem tudo será possível. Em tese, e sem passar perto de negociações espúrias, o que tenho a dizer é: o Legislativo eleito proporcionalmente pode servir de ponto de equilíbrio para um agente eleito com menos da metade dos votos que abocanhará a totalidade do poder. Entendeu?



Agora vamos para a parte dois dessa reflexão. Algumas críticas ao modelo proporcional estão associadas a uma lógica nominal de composição dos parlamentos. O fulano teve mais votos que o ciclano. Ciclano tem gabinete e fulano ficou de fora. Injusto? Não. Ou melhor: culturalmente injusto, pois adoramos olhar para pessoas e votar em pessoas. O problema central está aqui: o sistema proporcional está TOTALMENTE desenhado para calcular os eleitos com base em PARTIDOS, e não indivíduos. Os sujeitos só entram na última etapa da distribuição das vagas, ou seja, para dizer que a ordem de votação nominal no interior de cada partido determinará quem ocupará as vagas que nominalmente cada legenda conquistou por meio da proporcionalidade partidária obtida pelos cálculos de votos válidos, quociente eleitoral e quociente partidário. E isso é ruim? Não necessariamente. Isso precisa, sim, ser entendido e valorizado.



Mas a nossa cultura, em grande medida, vota ou se oferece ao eleitorado individualmente. E agora? As críticas abundam, os partidos de mostram pouco organizados ou aparentemente mal-intencionados para esse jogo coletivo, as reformas políticas recentes sugerem bipolaridade entre força do partido e potência do indivíduo e tudo isso nos leva à descrença e ao descrédito. Mas insisto: o sistema é bom. Ele contrabalanceia e valoriza coletivos. Um partido que tem 20% dos votos numa eleição proporcional, em tese e em linhas gerais, terá 20% das vagas no parlamento. Poderá ajudar seu executivo eleito, poderá apoiá-lo com base em negociações posteriores às eleições ou poderá ser oposição. Você consegue pensar no que seria, coletivamente num parlamento, um governo sem oposição? Se disser que sim, certamente está sonhando com algo que seja do seu modo. Mas e quando for justamente a antítese do que você mais gosta? Já pensou em a sociedade eleger o Executivo que mais te assombra e não haver Legislativo para conter ímpetos?



É óbvio que isso ficaria muito mais nítido e especial se os partidos funcionassem muito bem, tivessem sentido ideológico e lastro absoluto com seu eleitorado. Mas isso também depende de você. Votar em deputados(as) e vereadores(as) que tenham vinculação e influência partidária é recomendável. Pessoas que aderem “de véspera” às legendas onde é "mais fácil ganhar" serão parlamentares capazes de manter o sentido de um partido? Mas isso é pouco, pois muitos representantes eleitos e reeleitos estão faz anos nas mesmas legendas e subvertem a lógica ideológica e eleitoral daquele grupo. O Centrão talvez seja um bom exemplo aqui: muitos dinossauros fossilizados numa mesma legenda repetindo a eterna estratégia governista de sempre. Aderem a qualquer governo, a despeito da coloração. Será mesmo assim? Aderem cegamente ou atenuam algumas agendas em trocas de ações? Sinceramente: acredito em um pouco de cada coisa. Mas aqui entra o agente final: você.



O eleitor acredita na pessoa e, com isso, desacredita o sistema proporcional de partidos. Os partidos sabem disso, são compostos por membros com a mesma crença e oferecem ao eleitorado pessoas, e não a capacidade organizada de grupos – isso carrega algo de senso comum, pois as legendas são mais organizadas em suas ações políticas no interior de alguns parlamentos do que imaginamos. Mas some a tal narrativa o fato de que assumimos ter dificuldade de acompanhar o mandato de “nosso escolhido”, quando este foi eleito. E finalize com a pergunta: mas será mesmo que isso tem que ocorrer primeira pessoa? Se sim, provavelmente muitos eleitores vão esperar de seu parlamentar um ator de micro execuções territoriais ou paroquiais. É para isso que serve um vereador ou um deputado? Não. Ou seja: não podemos ter parlamentares individualizados de estimação, mas sim partidos que nos ofertem coerência a partir do que faz suas bancadas legislativas. Isso serve, principalmente, para grandes parlamentos como a Câmara dos Deputados. Por lá, passa parte expressiva do que impacta nossa realidade, mas seguimos torcendo para este ou aquele parlamentar.



Tal fenômeno se tornou tão evidente, inclusive nos discursos e atitudes dos próprios legisladores, que no plano federal o presidente conseguiu arrefecer a força das legendas por meio do tal orçamento secreto. A influência dos congressistas, em lógica individual, no orçamento, cresceu expressivamente ao longo do atual governo nacional. Perceba: o presidente “abriu mão” de recurso para se manter no poder, ou para "governar". Mas o custo disso foi personificar de forma absoluta a atividade parlamentar no plano federal em torno de pequenas execuções em bases eleitorais. Se não bastasse a sensação de que está tudo errado por falta de coletividade em um poder plural, o atual Executivo em conluio com os próprios deputados e senadores fizeram questão de nós levarem ainda mais para o campo do singular, em detrimento do desafio mais democrático do plural que começa por um sistema proporcional concentrado em partidos e deveria terminar na atuação de tais organizações no coletivo parlamento. Utópico? Sim, mas o nosso modo de agir é que nos distancia tanto da realidade. O sistema é interessante, deprimente é o que fazemos dele.

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