Humberto Dantas
Esse texto foi publicado em primeira versão no boletim Brasil em Foco da Fundação Konrad Adenauer na semana passada. Aqui uma versão minimamente modificada.
Os tratados sociológicos da primeira metade do século XX que buscam definir o caráter do brasileiro sugerem, a partir de Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, por exemplo: que herdamos dos ibéricos o individualismo e a egolatria, onde “cada um é senhor de si”. Essa percepção nos desafia a questionar: como se governa um país em primeira pessoa? Como se constituem parlamentos e partidos políticos? Vou ficar apenas na lógica legislativa: quais características e mudanças legais afastam os legisladores da ideia mais organizada de colaboração coletiva? Entender isso é essencial para atestar o quanto somos individuais numa arena que deveria primar pelo padrão plural, ao menos respeitando os partidos.
Organizei pela Fundação Konrad Adenauer em 2019 o livro Governabilidade, reforçando os achados da Ciência Política de que existem estímulos para se formar governo no Brasil, a despeito de incentivos individuais aos parlamentares. Resumidamente, o que sabemos é que as agendas do Planalto são fortes no Congresso e que os partidos políticos possuíam, ao menos até 2018, influência expressiva para a formulação e aprovação dessa agenda. Isso significa que algo convergia e era organizado entre legendas da base e o Poder Executivo.
A despeito de tal aspecto: o que ocorreu nos últimos anos que mostra o quanto valorizamos o caráter individual dos parlamentares eleitos proporcionalmente? Vamos dividir essa reflexão em cinco etapas com os olhos voltados para a Câmara dos Deputados: eleição, gabinete, iniciativa de lei, filiação partidária e acesso ao orçamento. Antes disso, observa-se que em lógica quase alucinada outras tantas medidas constrangem esse caráter individual. Abaixo, o que em tese o estimula e se mostra muito potente à realidade.
Sob a lógica da eleição, há certa bipolaridade. Todo o sistema é concebido para valorizar o partido, passando principalmente pelas contas de quociente eleitoral, partidário e suplência. Aqui um desafio: na lógica federativa, cada estado envia para Brasília seu conjunto de deputados federais, e nem sempre as alianças locais se assemelham ao comportamento nacional das legendas. Ademais, o que se costuma verificar são cálculos individuais condizentes com a ideia de filiação à legenda onde é “mais fácil se eleger ou manter o poder” – sendo a possibilidade de reeleição ilimitada. Entrevistas com parlamentares em busca de se perceber a importância do partido para seu sucesso nas urnas raramente têm como resposta um reconhecimento ao partido. Um sistema de lista aberta em uma sociedade individualizada tende a reforçar máximas de “voto em pessoas e não em legendas”. E o que se vê é o reforço disso: sob o que se chamou erroneamente de “efeito Tiririca” – e deveria se chamar “Enéas” – exige-se que individualmente um parlamentar tenha ao menos o equivalente, em votos nominais, a 10% do quociente eleitoral. Se por um lado raros caroneiros ficaram de fora, por outro dizimamos os estímulos ao voto de legenda, símbolo ainda frágil da força dos partidos em pleitos proporcionais.
No que diz respeito à estrutura de gabinete, em parlamentos ricos, com destaque à Câmara dos Deputados, o que se vê é uma imensidão de recursos públicos destinados individualmente para cada legislador. Isso o faz senhor de uma horda de cabos eleitorais travestidos de servidores dependentes de seu sucesso eleitoral pessoal. Além disso, estruturas permitem a contratação, por exemplo, de serviços extras e, muitos deles, alavancam a imagem do eleito. O ponto mais delicado diz respeito à comunicação. Enquanto a Constituição exige a impessoalidade na órbita pública, parlamentares têm assessores e estruturas pessoais para prestarem contas de SEUS mandatos. Nada de comunicar bancadas partidárias, só o louvor individual e inconstitucional.
No terceiro ponto, o mais controverso dos elementos. Será que a despeito do que pensa seu partido, um parlamentar deveria ter iniciativa de lei? Claro que as ideias têm autores, mas existe a real possibilidade de uma matéria ser apresentada pelo deputado X prosperar, ser colocada em votação e ser rechaçada por todos os colegas de partido em plenário, por exemplo. Uma legenda não deveria ter uma agenda comum? E destinar autorias de projetos a seus membros? Radicalizando: projetos têm que ter autores individuais? Ou deveriam ser partidários?
Sob a lógica de filiação partidária, o que mais chama a atenção no universo individual dos mandatos proporcionais são as seguintes regras: redução universal de um ano para seis meses no prazo de adesão à legenda para a disputa de eleições, liberdade para migrar para partido nascente sem risco de perda de mandato, possibilidade de o parlamentar eleito por partido que não atingiu cláusula de desempenho mudar de legenda para qualquer agremiação que atendeu tal requisito, e criação de janela constitucional de troca de partido no prazo de sete a seis meses da eleição. Aqui algo relevante: a percepção da regra dos mandatos proporcionais dizia que a vaga no parlamento pertencia ao partido, e não à pessoa. E foi exatamente isso que se visou flexibilizar, com uma novidade: quem pactua com o partido que vai sair da legenda e recebe anuência, não mais sofre risco de perda de mandado via suplente ou justiça.
No quinto ponto, o acesso ao orçamento federal, o mais agudo incentivo pessoal. As emendas parlamentares individuais se tornaram impositivas a partir do orçamento de 2015, ou seja: todo parlamentar federal tem garantido um pedaço do orçamento. Ademais, a partir de 2020 notou-se que o modelo associado à governabilidade se caracteriza pelo pagamento de “emendas do relator” do orçamento, negociadas individualmente com parlamentares, sem que haja declaração de tal negociação e liberação nominal do recurso. Não existe, por mais que o Supremo Tribunal Federal tenha pedido, uma lista identificando quem recebeu e quanto. O fato esconde, inclusive, o acesso da oposição a recursos. Nos últimos anos, o percentual de recursos livres do orçamento manejado por parlamentares na forma de emendas subiu de 4,7% em 2014 para 26,5% em 2021, de acordo com matéria de julho de 2022 de O Globo. Tais negociações são feitas entre presidente da Câmara, relator do orçamento, líderes do governo, Planalto e cada deputado, o que enfraquece partidos naquilo que se chamou, em outrora, de lógica da coalizão.
É diante de tais fenômenos que nos perguntamos: o que é um Parlamento sob toda essa lógica individualizada? Um conglomerado de mandatos ou um coletivo formado por agrupamentos partidários? Se a legenda não tem atuação consistente e coesa na casa legislativa, sobretudo em algo gigante como a Câmara dos Deputados, o que fazer em termos de democracia representativa? A ordem política está subvertida em sua engenharia, pois partidos, sistema proporcional e parlamentos parecem perder sentido. São concebidos sob princípios coletivos e operam, todos eles, em esferas individualizadas. Assim, a partir do que está posto acima, a pergunta central é: o que fazer? Pensar em mais louvor à lógica individual ou em incentivos à construção coletiva? Os dilemas e características acima existem em diversos países do mundo, não sendo exclusividade do Brasil, obviamente, mas o desafio por aqui é imenso.
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