Michelle Fernandez e Gabriela Lotta
No Brasil, nos aproximamos aos 100 mil mortos pro COVID-19. Depois de 5 meses do inicio da pandemia no país, já temos claro que estamos diante do maior desafio da nossa história recente. Além da crise da saúde, o país precisa enfrentar-se a uma grande crise política. Nos últimos meses, o país presenciou embates envolvendo o Ministério da Saúde e a Presidência da República, além de ataques entre o Poder Executivo Federal e outros poderes da República e o confronto entre o Presidente e os chefes dos Governos Subnacionais.
O negacionismo do presidente, o baixo desempenho do Governo Federal, a falta de coordenação das ações e a atuação do Executivo Federal sem levar em consideração as contribuições da ciência afetaram o enfrentamento do país à pandemia. Embora seja importante o desempenho de vários estados e municípios, que têm sido protagonistas no enfrentamento à crise, é essencial reconhecer o limite desta atuação isolada dos entes federativos. Em uma crise destas proporções, a capacidade de ação dos estados e municípios depende de coordenação do governo federal em um plano conjunto para o país. Na omissão do Executivo Federal das tarefas de coordenação, o Parlamento, em alguns momentos, tratou de legislar no sentido de ocupar esse vazio político. Nesse contexto surge o Projeto de Lei 1.826/2020, que estabelece indenização e assegura pensão por morte de dependentes de profissionais de saúde que morram durante a pandemia de COVID-19, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
A imensa vulnerabilidade dos profissionais de saúde justifica a importância desse Projeto de Lei. Em contato direto com as pessoas contaminadas, os trabalhadores da saúde vivem situações de risco porque estão constantemente expostos ao vírus. Segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem, em 5 de agosto, o número de casos confirmados de COVID-19 em profissionais da área é de 31.812, com 332 óbitos confirmados. Esse montante representa mais de 30% do total de mortes de profissionais da enfermagem em virtude da pandemia de coronavírus no mundo. No caso de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e de Agentes de Combate às Endemias (ACE), que exercem um trabalho de extrema importância na Atenção Primária, o número de óbitos ultrapassa 46 casos. De acordo com dados do Ministério da Saúde, no fim de maio tínhamos cerca de 10.788 médicos infectados e 18 mortes entre esses profissionais. Com um cenário crítico que tende a se agravar, é fundamental assegurar de alguma forma a esses profissionais que atuam no contato direto com a população. Eles são, em última instância, a personificação do Estado no combate à pandemia.
Pela PL 1.826/2020, teriam direito à indenização profissionais que, atuando no combate à pandemia, se infectaram com o novo coronavírus e ficaram permanentemente incapacitados. A redação do projeto garante ainda indenização para o/a cônjuge, dependente e herdeiros do trabalhador de saúde que tivesse falecido em decorrência da COVID-19 e atuado diretamente no atendimento de pacientes da doença ou em visitas domiciliares. Durante a tramitação no Senado, os senadores aprovaram emendas que ampliariam o rol dos contemplados pela indenização. Inicialmente, o texto da Câmara destinava-se a profissionais da área de saúde, agentes comunitários e trabalhadores de estabelecimentos da saúde. Com a ampliação feita pelo Senado, passou a integrar a lista das categorias que poderiam receber a compensação fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais e profissionais de nível superior e técnico que trabalham com testagem nos laboratórios de análises clínicas, além de trabalhadores de necrotérios e coveiros.
O projeto havia sido analisado e aprovado pela Câmara dos Deputados em maio, mas como passou por modificações na tramitação pelo Senado, durante o mês de junho, precisou ser analisado novamente pela Câmara. Assim, o PL foi finalmente aprovado no Congresso no dia 14 de julho. Porém, na última terça-feira, 4 de agosto, o presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente o Projeto de Lei aprovado. Na mensagem encaminhada ao Congresso, Bolsonaro alega que decidiu vetar a proposta por contrariar interesse público e ser inconstitucional. Na nota o governo alega que o projeto viola a lei que estabeleceu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus Sars-CoV-2 ao prever benefício indenizatório para agentes públicos e criar despesa continuada em período de calamidade. Além disso, a AGU determinou sigilo para o veto e não disponibilizou as justificativas jurídicas.
Para além do absurdo processual da medida, é extremamente preocupante o veto. Os profissionais da saúde pública do Brasil estão há mais de quatro meses atuando incessantemente em uma pandemia mundial para cuidar da população. As pesquisas coordenadas pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), que coletou dados em abril e junho com mais de 2200 profissionais da saúde mostra que as condições de trabalho destes profissionais têm sido absolutamente críticas. No fim de junho, 50% dos profissionais da saúde ainda não tinha recebido equipamentos de proteção individual (EPI); cerca de 70% não recebeu treinamento para atuar na pandemia e apenas 35% deles foram testados até julho. Este contexto mostra o descaso governamental em cuidar desses trabalhadores. As consequências de trabalhar ininterruptamente por meses nestas condições são também apontadas pela pesquisa. Quase 80% deles relatam problemas de saúde mental e 82% apontam sentir medo da pandemia.
O que estes dados sugerem é que os profissionais da saúde pública que atuam no Brasil estão trabalhando sem apoio institucional: não têm equipamento, não recebem treinamento, não são testados, não sentem suporte. E, em consequência disso, estão cada vez mais fragilizados, em termos de sua saúde física e mental.
Neste cenário, a aprovação de um auxílio para os que adoecerem ou para as famílias dos profissionais que falecerem seria um alívio mínimo para compensar os esforços e as condições arriscadas a que estes profissionais estão sujeitos. E seu veto reforça a falta de cuidado e preocupação do governo federal com os profissionais da saúde, diretamente, e com o combate à pandemia, indiretamente.
Em sessão conjunta a ser agendada, o Congresso poderá decidir se derruba ou mantém o veto. Se for derrubado, a lei seguirá para promulgação. Esperamos que, dada a contínua negação e descaso que o presidente tem tido com a saúde da população, mais uma vez o Congresso Nacional atue no sentido de promover o acesso da população a políticas de saúde e cuidado, essenciais em tempos de pandemia. Dado que o enfrentamento à pandemia de COVID-19 passa, necessariamente, pela atuação dos trabalhadores da saúde, é fundamental garantir que esses profissionais tenham direitos assegurados e condições de trabalho adequadas para continuar na linha de frente do combate à pandemia.
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