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Um novo pacto federativo? Atuação dos estados em tempos de pandemia

Michelle Fernandez e Hesaú Rômulo


No último mês, acompanhamos como a política estadual assumiu os holofotes no combate à pandemia do coronavírus no Brasil. Esse desempenho inesperado dos governadores coloca-nos a levantar uma série de questões acerca do manejo das políticas de saúde e sobre as relações institucionais em voga no país desde a promulgação da Constituição de 1988.


Com o fim da ditadura militar e a Carta Magna de 1988, surgem diferentes processos de reformulação do Estado. O desenho institucional proposto pela nova Constituição representou um importante avanço em direção à descentralização de políticas públicas no país conferindo maior autonomia a estados e municípios.


Entretanto, observando especialmente as políticas sociais, a União continuou mantendo papel central no processo de formulação de políticas e tomada de decisão sobre as mesmas. Apesar do novo desenho institucional implementado nos anos 1990 dar autonomia a estados e municípios no âmbito das políticas sociais, esses entes não tiveram acesso a recursos para colocar sua autonomia em prática. Essa situação gerou, por um lado, que estados e municípios tivessem uma dependência das políticas formuladas pelo governo central e, por outro lado, garantiu à União a manutenção da sua capacidade de coordenação de uma série de políticas, entre as quais se encaixam àquelas destinadas à saúde. Dessa forma, podemos afirmar que, com relação às políticas de saúde, tivemos um movimento de centralização da formulação, de tomada de decisão e da coordenação das políticas por parte da União. O comando único do SUS, referenciado no Ministério da Saúde, era até então uma característica nas diversas políticas públicas implementadas ao longo dos últimos anos. Campanhas de vacinação, enfrentamento a epidemias, surtos de arboviroses ou mesmo questões regionais que demandavam cuidados redobrados.


Esse arranjo que mantém a formulação e a coordenação das políticas de saúde no nível central do governo, coloca nos ombros dos estados e municípios a responsabilidade por implementar essas políticas. Portanto, esse é o arranjo institucional das últimas três décadas: tivemos um movimento importante no sentido de descentralizar a execução das políticas de saúde, mas tratando de garantir que todas elas pudessem ser implementadas da maneira como foi pensada em Brasília.


E o que muda com a crise do Covid-19? Por que os governadores passaram a ocupar lugar central na formulação de soluções para os problemas que estamos enfrentamos?

Nas últimas semanas, deparamo-nos com ações e discursos do Planalto desconectados das recomendações do próprio Ministério da Saúde. Essa atitude vacilante do governo central colocou o país num vazio decisório e empurrou os governadores para a ação. No lugar do arranjo federativo instituído, foi estabelecida a atuação facultativa por parte de estados e municípios. Nesse cenário, e em virtude da capacidade institucional e orçamentária, os estados passaram a ocupar lugar central na condução da crise sanitária.


Em um contexto de acirramento político por parte dos entes federativos, a sinalização do Ministério da Saúde coloca sob os ombros dos estados a responsabilidade na partilha de recursos emergenciais, embora seja sabido que há um script básico para o combate ao novo coronavírus, qual seja, leitos de enfermaria exclusivos, equipamentos de proteção individual em quantidade suficiente para os profissionais de saúde, número de respiradores proporcionais aos números de leitos de UTI exclusivos para o covid-19 e profissionais de saúde qualificados para a linha de frente.


Um aspecto que ilustra bem a ausência de coordenação por parte do governo central diz respeito aos repasses de custeio para atenção hospitalar liberados pelo Ministério da Saúde durante o mês de março. As portarias 395 de 16 de março de 2020 e 480 de 23 de março de 2020 deixam em aberto os critérios para divisão do recurso entre municípios, ou seja, fica a cargo dos estados decidirem, à sua maneira, qual a melhor estratégia de realocação de recursos e de que forma estes recursos podem ser melhor empregados no combate ao coronavírus. Portanto, se a divisão dos recursos não fica previamente estabelecida e não há, por parte do comando central do SUS, uma diretriz única de onde esse montante deve ser focalizado, sobram subjetividades e interpretações de como se preparar para enfrentar a pandemia.


Nesse sentido, estados com maior coalizão legislativa subnacional teriam maior capacidade de dialogar e sensibilizar seus municípios a centralizarem recursos em regiões com maior incidência de casos de coronavírus ou em municípios com maior infraestrutura de leitos de UTI. Por outro lado, estados com maior atrito no âmbito legislativo tenderiam a flexibilizar mais a repartição dos recursos, uma vez que a negociação interna entre os municípios é mais custosa. Diante desse cenário temos uma fragmentação das estratégias de enfrentamento da crise e um esfacelamento da ação coordenada das políticas de saúde, uma vez que o Ministério da Saúde perde a referência de comando na orientação sobre a aplicação vertical dos recursos.

Quando há um deslocamento no protagonismo diante da pandemia, as correlações de forças passam a se comportar de maneira mais imprevisível. Esperando cada vez menos de Brasília, os governadores são impulsionados para atuar, individualmente ou em bloco. Será esse o prenúncio de um novo arranjo federativo? As incertezas não residem apenas no Palácio do Planalto, mas também sobre o nosso sistema político.

Palavras-chave: Movimento Voto Consciente, Poder Executivo, Poder Legislativo, estados, federalismo, pacto federativo, pandemia, coronavírus, covid-19, Constituição Cidadã, Constituição de 1988, políticas públicas, SUS, saúde, Ministério da Saúde.

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