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CPI da Pandemia: faz sentido envolver estados e municípios?

Bruno Souza da Silva e Raphael Torrezan



Hoje foi dada a largada nos trabalhos da CPI da Pandemia, apelidada também de CPI da Covid. Como não poderia deixar de ser, todos os olhares estão voltados para o que acontece no Senado, afinal, há muito em jogo. Não que o governo Bolsonaro venha a terminar amanhã cedo, longe disso. Mas o ponto é: o desgaste pode ser tanto que a dor de cabeça governamental irá se tornar enxaqueca permanente. Desde quando vestiu a faixa presidencial e decidiu utilizar a sua caneta bic, o presidente jamais fruiu de vida tranquila junto ao Legislativo Nacional. O apoio que possui sempre custa muito caro em termos políticos. Conforme destacado em texto da semana passada neste espaço, escrito pela amiga de blog Graziella Testa e convidados[1], fora a CPI, o Orçamento Nacional fictício azedou o caldo na relação aparentemente harmônica entre Executivo e Legislativo que vinha se desenhando desde a vitória de Bolsonaro no Congresso ao emplacar os nomes de Arthur Lira (Progressistas-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) às presidências da Câmara e Senado, respectivamente.



A essa altura do campeonato todos já estamos cansados de saber: a política é o espaço do embate de ideias e visões de mundo, mas que jamais deve descambar para uma situação de conflito permanente, numa espécie de guerra de “todos contra todos”. Em algum momento, brechas se abrem e os parafusos que seguram as engrenagens do poder, espanam. Em outros termos, a oposição a Bolsonaro – que já desejou de impeachment à sua renúncia, ao saber que ambos não se concretizariam, tenta desgastar o governo com a CPI a respeito da condução das políticas sanitárias de combate a COVID-19. A CPI, instrumento de investigação de ilícitos e irresponsabilidades públicas, como todos também sabemos, é instrumento de minorias políticas no Legislativo, embora muitas não tiveram desfecho satisfatório. Apenas para ilustrar o argumento, de acordo com dados levantados pela cientista política Argelina Figueiredo, entre 1946 e 2013 foram criadas 361 CPIs só na Câmara dos Deputados, sendo que destas, 118 terminaram sem conclusão e, 17, sequer foram instaladas[2].



Mas esses dados não precisam, necessariamente, desalentar aos que desejam, genuinamente, que alguma responsabilização seja atribuída ao governo pela maneira como conduziu até aqui a pandemia. Como todo processo político, uma CPI é alvo de guerras de narrativas entre os seus apoiadores e críticos, sendo que pode repercutir de diferentes maneiras junto à opinião pública. Organizemos algumas dessas narrativas a fim de compreendermos o que se passa, hoje, no Brasil de Bolsonaro. Por um lado, o argumento principal dos defensores da CPI baseia-se na irresponsabilidade política do governo federal quanto a condução da pandemia, associada a demora para a aquisição de vacinas e a ausência de coordenação política nacional capaz de minimizar os impactos da pandemia em relação às quase 400 mil vidas que já foram perdidas. Por outro lado, o argumento principal do Planalto e de seus apoiadores é que estados e municípios receberam recursos para o enfrentamento da pandemia e, a todo momento, propagam a ideia que governadores e prefeitos nada fizeram com o recebimento deste montante – na realidade insinuam que houve mal uso do dinheiro público e favorecimentos ilícitos. É notório que o uso deste argumento é uma tentativa de criar uma cortina de fumaça para as ações do governo federal e consequentemente dividir o fracasso da condução da pandemia com os outros entes federativos.



No entanto, os argumentos utilizados para sustentar essa tese estão distantes daquilo que realmente encontra-se em curso. Dentre os principais pontos que são objetos de discussão encontram-se: (i) a União disponibilizou recursos a estados e municípios que “gastaram” em outras coisas que não a pandemia; (ii) estados e municípios não possuíram qualquer tipo de fiscalização e acompanhamento; (iii) caberia a União, tão somente, o envio dos recursos financeiros.



Os dados apresentados pelo portal da transparência do governo federal[3] apresentam com muita clareza os recursos destinados para Estados e Municípios. Aproximadamente R$ 95 bilhões foram destinados aos entes federados, destes, R$ 35 bilhões de recursos foram destinados aos fundos estaduais e municipais de saúde para ações de enfrentamento a doença, ou seja, compra de material de consumo, pagamento de servidores da linha de frente, aquisição de equipamentos e afins. Os outros R$ 60 bilhões, foram destinados aos estados e municípios através da promulgação da Lei Complementar 173/2020, e é neste montante que se encontra um dos principais argumentos dos apoiadores do governo federal.



O debate decorre do discurso que todo o recurso oriundo desta lei seria destinado ao tratamento da Covid-19, o que é falho. Apenas 20% da totalidade dos recursos recebidos por estados e municípios deveria ser destinado à Saúde e Assistência Social, ao passo em que os 80% restantes desses recursos oriundos da Lei Complementar 173/2020 foram destinados para que estados e municípios conseguissem honrar seus compromissos financeiros diante da crise econômica enfrentada, a qual chegou no país desde que o primeiro caso de covid foi confirmado. Aliás, é redundante lembrar que o modelo federativo brasileiro preconizado pela Constituição de 1988 caracteriza-se por essencialmente cooperativo. Em outros termos, cabe à União evitar que estados e municípios sofram com a queda de arrecadação local, a qual inevitavelmente gera prejuízo às políticas e serviços públicos fundamentais. Além disso, o agravamento do endividamento subnacional a médio e curto-prazo pode incidir em um efeito contágio na economia brasileira. Ou seja, enviar recursos para esses entes é a garantia de uma recuperação econômica mais rápida e homogênea para todo o território nacional. Inclusive, pode-se assumir que os recursos oriundos da LC 173/2020 foram essenciais para que estados e municípios brasileiros conseguissem sobreviver aos piores meses econômicos da pandemia. No entanto, apesar da cifra vultosa de R$ 60 bilhões, quando dividido entre os 26 estados, Distrito Federal e todos os municípios brasileiros, o recurso foi o suficiente para cobrir despesas por 2 ou 3 meses. Essa é a realidade do Brasil profundo que escapa às falas de quem olha o país apenas do alto do gabinete presidencial sem conhecer o que é o país.



Há, por fim, outro argumento muito utilizado por defensores governamentais, segundo o qual governadores e prefeitos que receberam esses recursos deveriam ser investigados pela CPI da Pandemia. Sem dúvidas, um dos argumentos mais distorcidos de todos. Lembremos: dado o regime federativo adotado, esse papel de investigação cabe aos Legislativos subnacionais, além do Judiciário de cada ente. Desta maneira, a análise do uso dos recursos e da condução da pandemia caberia ao Judiciário, Ministério Público e Legislativos Estaduais e Municipais. Ao que consta, em parte, isso foi feito. Apesar de pouco divulgado, o que vemos hoje no âmbito federal, já esteve em curso nos estados e municípios brasileiros desde o início da pandemia. No caso paulista, por exemplo, o Tribunal de Contas acompanhou de perto as despesas de seus entes, inclusive criando regras para melhor acompanhamento orçamentário-financeiro dos municípios sobre a pandemia, bem como o lançamento de plataforma de preenchimento obrigatório e mensal a respeito de aquisições de produtos e serviços visando o combate a Covid-19, além de informações contábeis a respeito do tema. O Ministério Público também seguiu a mesma linha, acompanhando através de planilhas as despesas dos entes federativos, cruzando as informações e buscando impedir qualquer dano ao erário público. Além disso, o MP acompanhou de perto as políticas públicas sanitárias do estado e município, visando o êxito no combate a pandemia.



Em suma, não vivemos no país das maravilhas. Por isso mesmo é necessário pressão por transparência e cobrança junto aos representantes políticos e, se preciso for, que cada municípios por meio da sua câmara municipal faça a investigação que for necessária junto a atuação dos prefeitos na condução da pandemia, assim como cada estado o faça por meio de sua Assembleia Legislativa. Mas não é possível aceitar a versão bolsonarista de que estamos no mais completo caos institucional no qual ninguém cumpre seu papel constitucional e que todos podem ser responsabilizados, de vereadores a governadores, pelo caos que nos encontramos, menos o alecrim dourado que ocupa a presidência. A CPI da Pandemia só poderá ser séria se tiver um planejamento adequado e parlamentares com desejo de trazer os fatos à tona. Senão, apenas virará estatística ao engrossar uma vez mais a percepção de que, em Brasília, tudo termina em pizza.





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