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Democracia, fake news e delírio coletivo

Eduardo Seino



Imprensa livre, acesso a fontes alternativas de informação e liberdade de expressão são pilares de regimes democráticos. Como diria o proeminente cientista político norte-americano Robert Dahl, estas instituições são necessárias para possibilitar que os cidadãos alcancem uma compreensão esclarecida acerca dos assuntos que os impactam e, assim, poderem participar efetivamente dos processos decisórios aos quais têm direito.



Então, se a diversificação dos meios de informação e a liberdade de expressão são fatores que fortalecem o processo democrático, poderia existir algum tipo de problema relacionado aos fenômenos de multiplicação de canais de informação da imprensa tradicional/formadores de opinião independentes e de veículos de comunicação rápida, como aplicativos de mensagem?




Em uma era de expansão do jornalismo pautado na sistematização de milhares de dados, buscando garantir maior consistência empírica à informação, vemos crescer, ao mesmo tempo, meios de (des) informação para os quais os dados e os fatos são aqueles que menos importam. A tentativa séria de entender a complexidade da realidade disputa lugar com discursos simplistas e pegajosos, de fácil memorização e replicação, que não resistem a um mero teste de coerência ou checagem.



Como tão bem descrito em “A morte da verdade”, da crítica literária Michiko Kakutani, em tempos recentes assistimos às consequências de um movimento de relativização e subjetivismo que jogam contra fatos e dados científicos, em uma tentativa capenga de reescrever a história e a ciência.




No limite, este movimento que busca conferir certa roupagem de legitimidade às informações, rompe com um compromisso mínimo com a verdade. Não que pretendamos sustentar, ingenuamente, que no passado a preocupação com a verdade sempre predominou entre atores políticos e sociais, mas estamos falando de algo novo, em um nível acima em intensidade e em escala de disseminação.



A mentira como estratégia política, revestida por discursos conspiratórios e agressivos, conduziu uma parte da sociedade a uma espécie de delírio coletivo, para o qual basta dizer algo que o grupo queira ouvir para que, sem qualquer avaliação crítica da informação, esta seja imediatamente aceita. Choveram exemplos disso em vídeos das recentes manifestações pós-eleições.



Na mesma linha, os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em “Como as democracias morrem”, expõem como o governo Trump violentou regras informais, compreendidas pelos autores como grades de proteção de democracia, de forma inédita, sobretudo com o uso rotineiro e descarado da mentira. Apesar de os autores estarem olhando para os Estados Unidos, não existe a menor dúvida que o cenário é exatamente o mesmo no caso brasileiro.



Desde o segundo turno da nossa eleição presidencial, entre o cômico e o estarrecedor, estamos observando a consequência deste novo método de persuasão pautado na criação de um mundo paralelo, que excita multidões embebedadas por discursos autoritários e ávidas a batalhar contra um inimigo imaginário (Comunismo? Aborto? Conspiração pela fraude eleitoral?).



Diante desse contexto, parece-nos que a democratização dos canais de informação e a velocidade da sua disseminação trazem consigo um tipo de dilema de filtragem. Por um lado, a ampliação dos canais de acesso pluraliza as fontes de informação e opinião, minimizando o poder de influência de alguns poucos veículos, que, por sua vez, são determinados por uma linha editorial específica. Por outro, no entanto, esta ampliação reduz a filtragem das informações – especialmente no caso de fake news – transferindo do informante para o informado a responsabilidade da validação da informação.



Assim, seria razoável pressupormos que todos os cidadãos estão aptos a realizar a filtragem necessária ao menos para distinguir uma informação verdadeira (ou enviesada, mas conectada à realidade) de uma informação falsa?



Após presenciarmos tantos episódios repetidos de ações motivadas por informações claramente falsas, outra pergunta inevitável é: como a sociedade pode estar menos vulnerável às informações falsas?



A agenda do enfrentamento às fake news, enquanto forma de proteção da democracia, deve se disseminar em diferentes setores da sociedade – como as escolas, a imprensa, as plataformas de rede social, as agências de checagem – e dos poderes constituídos, como o Legislativo e o Judiciário.


O Judiciário eleitoral, que tanto sofreu na eleição de 2018, conseguiu ter uma atuação muito mais forte e assertiva nas eleições de 2022 no sentido de coibir e punir. O Legislativo está discutindo diversos projetos de lei com objetivos semelhantes[1]. As redes sociais foram e devem continuar sendo pressionadas a desenvolver mecanismos de filtragem de informações falsas e responsabilização.



Porém, uma das grandes dificuldades relacionada às fake news é a velocidade da transmissão. O estrago é rápido, ainda que punido posteriormente. Por isso, neste caso é inescapável, como ação preventiva, ensinar a identificação de fake news por meio de exercícios de raciocínio crítico a partir de casos concretos. Exemplos não faltam e provavelmente o lugar mais efetivo para se trabalhar esta formação sejam as escolas.



Se o compromisso com a verdade e a avaliação crítica das informações não se tornarem um projeto amplo, os nossos pilares democráticos indicados no início do texto sentirão golpes frequentes. Não existe liberdade de expressão ancorada em mentira e a tolerância, mesmo na democracia e para a sua própria defesa, tem limite.




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